I.- A GÊNESE
CONVITE OFICIAL PARA O GRANDE BAILE COMEMORATIVO DA CHEGADA DA PRIMAVERA, A SER REALIZADO NA SEDE SOCIAL DO CLUBE FLUMINENSE.
O Clube Fluminense tem a honra de convidar V.Sa. e sua Ilma. Família para participar do Grande Baile Comemorativo pela chegada da Primavera, que terá lugar na próxima sexta feira aos dezessete dias do mês de setembro do presente ano, na sua Sede Social, localizada no Solar do Visconde do Rio Seco, sito à Praça da Constituição, Antigo Largo da Polé, 67 (*), nesta Histórica, Muito Leal, Heroica e Digníssima Capital do Segundo Reinado, Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Pede-se a presença exclusiva de convidados, em traje de Gala Completo, pontualmente às 19:00 horas, de forma a poder recepcionar condignamente, à Família Imperial.
(Para os Ilmos. Senhores portadores de uniformes militares, comunica-se que medalhas, distinções honoríficas, armas e galardões, poderão ser utilizados conforme padrões estabelecidos em lei).
Setembro do ano do nosso Senhor Jesuscristo de 1865.
A DIRETORIA
Embora SM Dom Pedro não tivesse comparecido ao Clube Fluminense naquela ocasião, preocupado que estava com o desenrolar dos fatos de guerra na frente paraguaia, costumava frequentar alguns bailes acompanhado de sua digníssima família. Prestigiava aqueles promovidos por clubes ou por membros destacados da sociedade, notadamente pelos barões do café. SM chegou de fato a criar certa fama de pé de valsa e enfrentava as quadrilhas e as polcas com alegria e até com alguma frivolidade. Dançava com varias damas, aparentemente com a anuência de D. Teresa Cristina. As filhas, Isabel e Leopoldina, dançavam apenas com mulheres e às vezes quando possível, com príncipes estrangeiros. A imperatriz, mesmo puxando de uma perna, arriscava com certa desenvoltura alguns schottisches, olhando sempre para o Imperador, seu marido, com admiração e respeito. A Condessa de Barral zelava apenas, entre esporádicos suspiros, pelo comportamento das princesas.
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(*) Atual Praça Tiradentes (a partir de 1890).
Trinta anos tinham-se passado desde a morte de Dom Joaquím José de Azevedo, o Visconde do Rio Seco e aparentemente, ninguém mais se lembrava daquela figura nefanda, misto de herói e bandido, proprietário do casarão, sede do exclusivo Clube Fluminense, entre 1812 e 1835, ano de sua morte. Homem inteligente e muito rico exerceu cargos diversos na Casa Real desde o tempo de D. Maria, à época ainda Barão do Rio Seco e tornou-se homem de confiança do PR D. João, a ponto de organizar em tempo recorde e de forma brilhante, a fuga da Família Imperial para o Brasil. (*)
Muitos boatos foram gerados em torno do seu nome e algumas verdades, aparentemente mentirosas, lhe geraram a fama de corrupto, desonesto e traidor do povo português.
Quem furta pouco é ladrão,
Quem furta muito é Barão,
Quem mais furta e esconde, passa de Barão a Visconde.
Furta Azevedo no Paço,
Targini rouba no erário,
e o povo aflito carrega, pesada cruz ao calvário. (**)
Tratava-se certamente de homem organizado, metódico, com inegável capacidade de liderança e principalmente capaz de passar por cima de qualquer obstáculo para atingir seus objetivos. Tanto foi assim que em 24 de novembro de 1808 tendo recebido ordens específicas de D. João para organizar o embarque da fuga, consegue, em menos de três dias, sob o mais absoluto sigilo, aprontar em detalhes, a grande odisseia do Império.
O Barão, futuro Visconde de Rio Seco pela vontade e a gratidão de D. João, numa demonstração de prestigio e confiança por parte da Família Imperial, determinava quem e onde deveriam ser embarcados os mantimentos e a quantidade de água necessários para suportar pelo menos dois meses de travessia marítima, além de absorver a responsabilidade das decisões, notadamente quanto ao esquema de segurança e controle da operação, sem falar no destino e acomodação das bagagens, das armas, dos utensílios, das joias, enxovais, documentos e arquivos daquela Corte, já em verdadeiro pandemônio.
Cuidou com esmero para que a Família Real ficasse distribuída de forma equilibrada nos principais navios. O barão se preocupava com a segurança da travessia.
“Estas a perceber o que aconteceria em caso de naufrágio?” perguntava Azevedo (como era chamado na intimidade por D. João).
Dona Carlota Joaquina aos gritos, como era do seu costume, exigia que a Família Imperial embarca-se integralmente no navio principal. Felizmente ignorada, em nome do bom senso, o Príncipe Regente ainda apoiado pela mãe e pelos conselheiros mais chegados, determinara que os planos arquitetados por Azevedo fossem mantidos.
Desta forma, na nau “Príncipe Real”, embarcariam: D. Maria I a matriarca, O Príncipe Regente, os infantes D. Pedro e D. Miguel e o herdeiro espanhol, infante Pedro Carlos.
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(*) 1º Barão do Rio Seco, 1º Visconde do Rio Seco, Escrivão e Tesoureiro da Casa Real, Comendador da Ordem de Cristo, Comendador Honorário da Ordem da Torre e Espada, Titular do Oficio do 1º Tabelião da Vila de Mariana, Comendador de São Sebastião d’Elvas da Ordem de Cristo e do Senhorio da Vila de Macaé e Comendador da Ordem de N.Sa. da Conceição da Vila Viçosa.
(**) Versos populares do período “Joanino”. Autor desconhecido-
O fato da Carlota querer viajar no mesmo navio que o Príncipe Regente, certamente era “truque”, como dizia D. Maria, alguma coisa estava tramando e perante a firme decisão do marido, viu mais uma vez frustrada sua iniciativa. A espanhola jogava fogo pelas ventas, mas Azevedo também ficou frustrado quando percebeu que teria que viajar na mesma embarcação em que viajaria o puto espanhol que, como ele dizia, era tão cretino e prepotente que se achava o Cortez e o Pizarro ao mesmo tempo. O insuportável menino, que passava “férias” com a prima no palácio de Queluz, graças à Napoleão que já tomava conta das terras de Fernando e de Isabel, acabou embarcando junto com D. João, quem mostrava certa preferência pelo moleque.
Sem mancómetro algum para o momento crítico pelo qual a prima estava passando, numa aparente e eterna TPM (ainda desconhecida na época) “el muchachito” não parava de falar:
– “Carlotita prima querida”, dizia:
“Estoy comiendo ansias, mal consigo esperar para mostrar mi valor en tierra de indios”.
– “Mira aqui mocoso, tu te vas a comportar como un hidalgo de cuatro costados, como enseñado por el gran Carlos IV, tu dignísimo abuelo, ni que tenga que amarrarte de los cojones a la pata de la mesa, entendiste?” dizia Carlota, beliscando e puxando o moleque pela orelha.
– “Pero Carlotita, querida prima”, protestava o pirralho, “no sabia que eras devota de Fray Bartolomé de las Casas”.
– “Nunca me imaginé que fueras defensora de los silvícolas brasileños”, ponderava.
D. João presenciava a cena e ao certo ninguém conseguiria dizer se efetivamente gostava do garoto, ou apenas apoiava seu comportamento teimoso e cretino para incentivar a briga com a Carlota que, como sempre, se mostrava voluntariosa, mal-humorada e intransigente.
– “Por nuestra señora de Aranjuéz”, vociferava a Princesa espanhola, “yo te mato muchacho zangolotino, te cuelgo de los dedos gordos de cada pié, aunque sea la ultima cosa que haga en mi desgraciada vida”, ameaçava.
D. João ria a vontade e comentava: Tua prima é tão feia que mete medo no susto, viu menino? e mesmo assim me arranjou nove filhos, completava, sem que o perplexo primo espanhol compreendesse totalmente o maldoso comentário do Príncipe Regente.
Maldoso, em termos, diríamos; sem nenhuma pretensão de interpretar historicamente o comportamento da espanhola e muito menos de minimizar as virtudes de D. Carlota Joaquina, lembramos que não foi a toa que D. João, uma vez estabelecido no Rio de Janeiro, mandou prende-la no Convento da Ajuda, numa tentativa de conter o comportamento verdadeiramente ninfomaníaco da Princesa que já tinha inclusive, o hábito de se oferecer aos criados mais jovens e fortes da Quinta do Ramalhão.
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(*) Na sua conhecida obra em 3 Vols. Publicada no Rio de Janeiro em 1939 pela Imprensa Nacional, “ A Corte de D. João VI no Rio de Janeiro”, o conhecido jornalista, poeta, cronista, memorialista, teatrólogo e orador Luiz Edmundo (de Melo Pereira da Costa), nos diz: “Não há memória, em toda a história portuguesa, de um rei que fosse, como D. João, tão ignominiosamente enganado pela esposa. Chega a causar espanto. Além disso, Carlota Joaquina, ao procurar os seus amantes, nem o senso da escolha tinha. Tudo lhe servia, tudo, desde que tivesse a forma aproximada de um homem. Até os subalternos da Quinta do Ramalhão não escaparam a sua depravação messalínica……… Na Corte de Lisboa, a mulher de D. João lembrava uma gata, eternamente no cio, a latejar luxúria.
A prima Carlotita, futura Imperatriz honorária do Brasil, acabou embarcando no “Afonso de Albuquerque” junto com as infantas Maria Isabel, Maria Assunção, Ana de Jesus e Maria Teresa.
Embora amargando uma separação de dois meses durante a travessia marítima, a infanta Maria Teresa acabaria sucumbindo aos encantos do primo conquistador, com quem manteve um relacionamento precoce e aparentemente furtivo, dentro das limitações que as fofocas palacianas o permitiam.
Parece ser que a primogênita e preferida de D. João, a infanta Maria Teresa, Princesa da Beira, já manifestava, ainda jovem, certa vocação para o incesto que acabou consolidando, primeiro com o primo Pedro Carlos, de quem ficou viúva em 1812 para se casar logo depois com o irmão da mãe, o tio Carlos, Conde de Molina.
Azevedo obviamente garantiu seu lugar, o da família e o dos amigos naquelas embarcações. Todavia, quase perde a oportunidade de viajar junto com a Corte, preocupado que estava com a Real Biblioteca, que acabaria sendo largada no cais e só embarcada para o Rio de Janeiro dois anos depois. O Barão teria ficado para trás, barrado pela multidão ensandecida. Seu embarque parecia impensável. (*)
A esta altura a população, percebendo a jogada da aristocracia e certa de que ficaria a mercê das tropas francesas, não só impedia a passagem de quem pretendia embarcar, mas na ânsia de se salvar, morria na tentativa de abordar pela força aquelas imponentes naus.
A reação era de indignação e de total revolta pela fuga.
-A-ze-ve-do, A-ze-ve-do, gritava a turba desquiciada, “sois traidor e matreiro” completava.
Cheiro de pólvora, mar revolto e vermelho pela quantidade do sangue derramado, céu da cor da consciência da Carlota, dizia o Príncipe Regente, raios, chuvas e trovoadas na madrugada invernal do delta do Tejo. Cadáveres empilhados pelo cais à procura de um destino final, feridos dessangrando-se, gritos de dor e desespero, salteadores, mendigos e aproveitadores completavam o quadro dantesco da interminável fuga, só concretizada no alvorecer do 29 de novembro.
Neste cenário de salve-se quem puder o verdadeiro herói foi o obscuro Barão de Calheta, Dom José Maria Borges de Oliveira e Souza, originário da ilha da Madeira e amigo de infância de Azevedo que, tendo percebido a enrascada em que se encontravam, conseguiu puxar o amigo para, sorrateiramente, em pequena embarcação à remo de um sacristão disposto a vender caro seu repentino tesouro, permitiu a fuga dos barões rumo ao navio, que ainda demoraria mais dois dias para zarpar, a espera de bom tempo.
Ambos, considerados posteriormente como os grandes corruptos da corte de D. João, explicariam suas fortunas para as próprias consciências, como a compensação pelas “perdas financeiras” experimentadas durante a louca fuga da terrinha.
Tendo aportado na cidade de Salvador na Bahia junto com a Família Imperial, decidiram seguir viagem diretamente até o Rio de Janeiro, prometendo a preparação, na cidade dos tamoios, de uma recepção digna e merecida à altura de tão ilustres visitantes.
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(*) Ficaram no cais 317 caixotes, com aproximadamente 60 mil peças, entre livros, incunábulos, mapas, gravuras, estampas, moedas, medalhas e documentos; recheados de obras raras e valiosas. Este acervo, acrescido da maior coleção particular de livros à época, pertencente ao Conde da Barca (parente do Azevedo), D. Antônio de Araújo e Azevedo, constituiu a base da atual Biblioteca Nacional, fundada por D. João, logo após o recebimento deste inestimável tesouro, em 29 de outubro de 1810.
Juntos, teriam ainda uma vida razoavelmente tranquila, prazerosa e libertina, como só o dinheiro é capaz de proporcionar. Cínicos, falsos moralistas e religiosos de araque, acabaram comprando as comendas e o reconhecido prestígio de que gozavam, além das indulgências necessárias para anular seus eventuais pecados. Convencidos estavam de ter aberto escancaradamente, as portas de qualquer céu ou paraíso prometido para as almas humildes caridosas e contritas.
Na volta de D. João para Lisboa em 1821, os amigos, já transformados em viscondes, sobejamente conhecidos pelas roubalheiras de que participaram, foram impedidos de aportar, partindo, na mesma embarcação de volta para o Brasil.
Foi o desprezo de um povo, a ignomínia, o opróbio e a desonra completas, Azevedo ainda perturbou-se, dada sua relação de amizade com D. João; Borges, ria por dentro e esboçava um sorriso cínico por fora. Dissimulado, ainda comentaria com o parceiro:
– Para quem foi obrigado a raspar a cabeça por causa dos piolhos, isto aqui não passa de ridícula zombaria, meu prezado Azevedo.
Mal sabia o indignado povo português que apenas aplainava o caminho para que os ilustres meliantes pudessem desfrutar à vontade das suas fortunas, amealhadas pelas influências e as benesses cartoriais de que desfrutavam naquela Corte, ainda impactada pelas condições encontradas além mar. Mal sabia o indignado povo português que instituía naquele momento, a exportação da corrupção oficial reinante. A tradição portuguesa do “burguês-fidalgo”, as benesses, as Capitanias Hereditárias e o próprio sistema cartorial, faziam sua estreia no novo continente e seus desdobramentos, duzentos anos depois, continuam levando à loucura seus descendentes, pela total impossibilidade de pagar, através dos seus impostos – na maior carga tributária per capita mundial – as roubalheiras cometidas por gregos, troianos e brasileiros como forma de retribuição pelas “perdas financeiras” sofridas na louca fuga de si próprios.
O Barão de Calheta, Dom José Maria Borges de Oliveira e Souza, tendo sido elevado à condição de Visconde pela sua transcendental participação na fuga da Família Imperial e especialmente no resgate do Azevedo das mãos da turba ensandecida naquela fria e memorável noite no delta do Tejo, galgaria ainda mais um degrau nobiliárquico, conquistando o título de Conde de Calheta.
O título concedido por Dom João VI, à pedido do amigo Azevedo, foi outorgado a pretexto da participação ativa do seu Zé Maria na criação das estufas de aclimatação de especiarias do Jardim Botânico, menina dos olhos do então Príncipe Regente.
D. Rodrigo de Souza Coutinho, Conde de Linhares e primo distante de Zé Maria, então ministro da Corte e autor da ideia de cultivar cravo, pimenta e canela, eliminando a dependência comercial da Índia, apoiou sem restrições a iniciativa.
Nesta época de vacas gordas e aparente felicidade eterna, o Conde ganha um presente do sempre grato amigo Azevedo, que se tornaria marcante ao longo da vida dos Borges de Oliveira e Souza: uma escrava jovem e garbosa, de personalidade marcante e pele de sapoti, (preta, lisa e por demais brilhante), portadora de regaço e culote generosos e principalmente, líder religiosa da sua comunidade. Era orgulhosa e altiva; autoritária e dominadora; de têmpera aristocrática, entranhas de mel e sorriso cativante. Valorizando seu preço, o certificado de compra explicitava sua nobre linhagem: era originária do alto Rio Niger, detalhando o fato de ter sido sequestrada do seio de uma familia de príncipes Yorubás. No mesmo embrulho, veio sua filha, pequenina rapariga muito sorridente de olhos extremamente vivaces e dentes alvos, com presumíveis 4 ou 5 aninhos, atendendo pelo nome de Sikè e que por estranhos designios faria parte integrante da familia Borges pelos próximos cem anos.
Era um encanto, uma graça, sorria como verdadeiro anjo, irradiava simpatia, era alegre e sem nenhuma consciência do significado da escravidão. Manifestava abertamente seus desejos e ousada, conseguia dos adultos tudo o que queria.
Até seu pranto e suas pirraças são encantadores dizia o Conde na intimidade, deslumbrado com a inteligência e a personalidade da menina já manifesta em tão tenra idade. Circulava à vontade pela casa grande com a complacência e o agrado da família.
Ninguém conseguiria imaginar a importância e a transcendência desta linda criança negra na vida da sua comunidade e principalmente na vida dos Borges de Oliveira e Souza.
O Conde decidiu que seria sua “princesinha de chocolate”, com a aquiescência da Sra. Condessa D. Beatriz que, fazendo questão de mantê-la dentro de casa, inclusive alimentava-a com pequenos bolinhos de comida oferecidos com a mão, sob a enorme mesa da sala de jantar.
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(CONTINUA EM VERDADES MENTIROSAS III)