Arquivo do mês: agosto 2012

O SILÊNCIO GRITANTE DA FAMÍLIA

O João nunca soube o motivo, mas os odores foram definindo sua personalidade desde criança. Quando jovem quis se casar com a Betânia, apenas pela atração do que ele qualificava como cheiro inebriante de vadia e ainda, dizia, misturado com rúcula verde e ambrosia. Parecia obedecer sempre ao seu faro e pela vida afora suas referências foram apenas os odores, os cheiros, o fedor e até a fedentina e o bodum.
Curiosa a história do João, uma saga diferente, um fado provavelmente indesejado.

El Lugar que me tocóAquela sala era por princípio lúgubre. Fedia a parafina queimada, a flor de calêndula, a morto coberto com pétalas de rosa e a coroas quase murchas pelo calor de um verão carioca singular. Alguns até desmaiaram.
Há muitos anos, a família se reencontrava apenas em batizados e velórios, sem distinção nem preferência, apenas acontecia e todos aproveitavam para colocar o papo e os resquícios de afeto em dia.
– Nossa, mas como o João está crescido dizia a tia Carmen.
– A gente não se vê há mais de quinze anos, será que a velha esperava que ficasse anão pro resto da vida? perguntava João. Ela devia cuidar era dessa halitose macabra; a cada beijo babado sinto que a minha bochecha se esfacela e cai no chão, feito vidro temperado.
E o tio Otto? com essa pose de príncipe alemão, contava João, usa “perfume” 51, aquele que, além de ser uma boa ideia, tem o melhor fixador de todos os tempos. O fígado dele só funciona lubrificado com óleo de rícino.
E não parava por aí; o João parecia metralhadora e, sem perceber, revelava as imagens que os odores tinham plasmado na sua mente.
O colo generoso da sua avó exalava o perfume da flor de laranjeira da China, sua irmã Ana Leticia fedia a sabonete Phebo; aquele, o da Amazônia. A Regininha não conseguia tirar o fedor da agua sanitária da sua roupa e a Maria parecia que tinha descascado alho e cebola naquele mesmo instante, costumava dizer o Joãozinho com frequência.
Praguejava por costume, desmoralizando as pessoas da família e as atitudes e os fatos a elas relacionados a partir dos fedores reinantes na sua cabeça, mas curiosamente, nunca aceitava o prazer que ao transforma-los em cheiros, essa fedentina toda lhe causava.
Certamente, faziam parte do seu mundo especial em que as maiores dores experimentadas e os prazeres mais intensos que povoaram a sua vida, estavam ligados a cheiros e fedores intensos.
Mas naquele momento o que mais incomodava o Joãozinho eram as piadinhas sorrateiras, o riso disfarçado e a algaravia que vinha dos cantos daquela sala. Ele sabia que se sua mãe pudesse levantar daquele leito eterno, iria puxar a orelha de cada um dos presentes. Achava de mau gosto e principalmente de uma falta de respeito a toda prova. Tudo bem, ela nunca foi a mãe que ele queria que fosse, mas afinal era a matriarca da família.
O café era batizado com conhaque da pior qualidade, misturavam-se em sequência aqueles bafos de álcool com os do suor rançoso dos que aparentemente não tinham morrido e ainda por cima sentia-se aquele cheiro penetrante do vento de chuva, de terra e plantas molhadas que se infiltrava pelos frisos da janela.

Minha família nunca existiu, pensava João, a mãe, até se esforçava para unir aqueles seres que a única coisa que tinham em comum era o próprio sangue. O pai, jamais fez qualquer esforço nesse sentido, minhas irmãs apenas queriam casar, mas não ambicionando uma melhor condição de vida, ou mesmo a procura da sua felicidade, queriam era um pretexto para sair de casa da forma menos indigna possível.
A mais velha acabou morando em Nova York e a caçula foi-se embora para a Nova Zelândia argumentando abertamente que o dia em que algum membro da família morresse, não conseguiria chegar a tempo para o velório (odiava carpideiras, mas tinha verdadeira alergia à própria família, mesmo tendo convivido com ela poucos anos).
Aquilo nem sequer era carma, dizia João, era o reencontro dos desesperados.
Os gritos do silencio e do desamor de uma família que nunca existiu.
Ele não sabia se algum dia chegou a amar alguém, apenas sentia falta da dor, do prazer e dos cheiros da sua infância.
De fato, jamais esqueceria os cheiros do colégio, do natal e da Betânia, mas o que de fato marcou a vida do João, era saber que o dia do seu aniversário, ano após ano, tinha cheiro de nada.
HB

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MITO

No reino de Cronos,
as deusas não tem descendência, nem envelhecem,
apenas se perpetuam.
Eternas,  aceitam ser seduzidas e por vezes gozam.
Dédalo à espreita, qual minotauro enlouquecido,
aprisionado no próprio labirinto, não quer mais ser arquiteto.
Quer seduzir, adora o culto.
HB

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O ÚLTIMO IMPERADOR E A RAINHA DO MARANHÃO

 

ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO MARANHÃO APROVA, EM CARÁTER DE URGÊNCIA, PROJETO DE LEI PARA A ESTATIZAÇÃO DA FUNDAÇÃO JOSÉ SARNEY (Jornal O Globo, 20 de outubro de 2011)

Quando a gente pensa que a monarquia é finda de vez, aí é que ela ressurge com força inacreditável. Elizabeth II tal vez não seja o exemplo ideal porque ela sempre esteve onde ainda está e não sabemos quanto tempo mais deverá ficar no mesmo lugar, mas quando falamos da “Rainha do Maranhão” ninguém tem dúvida sobre a quem estamos nos referindo. Aliás, quando falamos do Maranhão, nos vem à mente de imediato a própria monarquia em todo seu esplendor, na verdade, mais do que uma monarquia, parece-nos a volta do coronelismo, que pretensamente teria sido extinto há muitos anos; a própria Capitania Hereditária nos legada pela monarquia lusitana.

E quando falamos do “Último Imperador”, então? sabemos também  (mesmo que seja no fundo das nossas consciências) que não estamos fazendo referência ao triste PU-YI, o imperador chinês atropelado por Mao Tse-Tung e pela revolução chinesa de 1949 e nem sequer ao belíssimo filme de Bertolucci, que trata especificamente deste tema e foi ganhador de vários  Óscares  em 1988, mas efetivamente nos referimos ao Pai da “Rainha do Maranhão” numa radiografia clássica da hierarquia nobiliárquica.

O que pouca gente sabe é que a “Rainha do Maranhão” teve seu inferno astral e durante muitos anos, sofreu e apanhou feito cachorro magro até conseguir o ambicionado “poder”. Tudo bem, não foi pelos caminhos do trabalho honesto e criador; muitos (as más línguas) dizem que inclusive teve que se prostituir durante algum tempo, que teria sido mãe solteira e que gostava de se deitar com seus servidores (especialmente escolhidos pela sua força física e pela sua juventude) e por vezes com mais de um (e até cinco ao mesmo tempo), mas afinal, com ajuda do seu pai (celestial) conquistou os seus objetivos.

O povo, como as crianças, quando quer ser cruel, não tem limites; assim, arranjaram-lhe alguns amantes (inclusive um coronel riquíssimo) e a história de que teria mandado matar alguns deles, feito “viúva negra”, ainda é comidinha de botequim em noites de boi-bumbá.

No cúmulo do que seria uma bruta fofoca palaciana, se diz que os seus empregados, aqueles jovens fortes e bonitos, verdadeiros escravos sem perspectiva de alforria, se ofereciam para deitar sobre a lama, a fim de que a sua rainha pudesse passar sem manchar a sua branca plumagem. Em termos de “riqueza” e “poder” qualquer coisa que possamos imaginar é pouco.  Proprietária de grandes extensões de terra, além de incontáveis imóveis e engajada nos principais movimentos políticos e sociais maranhenses, em que pese o seu precário estado de saúde, sempre se mostrou presente e eterna. Foi publicado inclusive, nos jornais locais, que conseguiu comprar (com ajuda do marido) a “Companhia de Aguas do Maranhão” e no cúmulo da prepotência e má caratice, acabou vendendo o precioso líquido para o já sofrido povo maranhense.

Felizmente, quase que encarnando a vontade desse mesmo povo, (e para felicidade geral da nação) Dom Pedro II lhe negou o ambicionado título de “Baronesa de Santo António”, mas mesmo assim, Ana Joaquina Jansen Pereira (Donana) “A Rainha do Maranhão”, viveu até bem entrados seus 76 anos, entre 1793 e 1869, deixando, além de considerável fortuna, onze filhos, muitos netos e uma infindável descendência que em sua homenagem e a do santo patrono local, adota, até hoje, de forma predominante, o significativo nome de José de Ribamar (Jansen). Atualmente é nome de ruas, de avenidas, de praças e jardins, de escolas e até da maravilhosa lagoa que embeleza o desenvolvimento urbanístico da “Grande São Luiz”.

O chamado Último Imperador, seu pai, praticamente dono do Maranhão, se eternizou no poder, até ser pego com a boca na botija quando, sem saber de nada e nem sequer compreender o motivo de tanto rancor do seu querido povo, foi assassinado no famoso Convento das Mercês (hoje, Fundação José de Ribamar Sarney) tentando cobrar mais impostos dos desvalidos maranhenses.
HB

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