O João nunca soube o motivo, mas os odores foram definindo sua personalidade desde criança. Quando jovem quis se casar com a Betânia, apenas pela atração do que ele qualificava como cheiro inebriante de vadia e ainda, dizia, misturado com rúcula verde e ambrosia. Parecia obedecer sempre ao seu faro e pela vida afora suas referências foram apenas os odores, os cheiros, o fedor e até a fedentina e o bodum.
Curiosa a história do João, uma saga diferente, um fado provavelmente indesejado.
Aquela sala era por princípio lúgubre. Fedia a parafina queimada, a flor de calêndula, a morto coberto com pétalas de rosa e a coroas quase murchas pelo calor de um verão carioca singular. Alguns até desmaiaram.
Há muitos anos, a família se reencontrava apenas em batizados e velórios, sem distinção nem preferência, apenas acontecia e todos aproveitavam para colocar o papo e os resquícios de afeto em dia.
– Nossa, mas como o João está crescido dizia a tia Carmen.
– A gente não se vê há mais de quinze anos, será que a velha esperava que ficasse anão pro resto da vida? perguntava João. Ela devia cuidar era dessa halitose macabra; a cada beijo babado sinto que a minha bochecha se esfacela e cai no chão, feito vidro temperado.
E o tio Otto? com essa pose de príncipe alemão, contava João, usa “perfume” 51, aquele que, além de ser uma boa ideia, tem o melhor fixador de todos os tempos. O fígado dele só funciona lubrificado com óleo de rícino.
E não parava por aí; o João parecia metralhadora e, sem perceber, revelava as imagens que os odores tinham plasmado na sua mente.
O colo generoso da sua avó exalava o perfume da flor de laranjeira da China, sua irmã Ana Leticia fedia a sabonete Phebo; aquele, o da Amazônia. A Regininha não conseguia tirar o fedor da agua sanitária da sua roupa e a Maria parecia que tinha descascado alho e cebola naquele mesmo instante, costumava dizer o Joãozinho com frequência.
Praguejava por costume, desmoralizando as pessoas da família e as atitudes e os fatos a elas relacionados a partir dos fedores reinantes na sua cabeça, mas curiosamente, nunca aceitava o prazer que ao transforma-los em cheiros, essa fedentina toda lhe causava.
Certamente, faziam parte do seu mundo especial em que as maiores dores experimentadas e os prazeres mais intensos que povoaram a sua vida, estavam ligados a cheiros e fedores intensos.
Mas naquele momento o que mais incomodava o Joãozinho eram as piadinhas sorrateiras, o riso disfarçado e a algaravia que vinha dos cantos daquela sala. Ele sabia que se sua mãe pudesse levantar daquele leito eterno, iria puxar a orelha de cada um dos presentes. Achava de mau gosto e principalmente de uma falta de respeito a toda prova. Tudo bem, ela nunca foi a mãe que ele queria que fosse, mas afinal era a matriarca da família.
O café era batizado com conhaque da pior qualidade, misturavam-se em sequência aqueles bafos de álcool com os do suor rançoso dos que aparentemente não tinham morrido e ainda por cima sentia-se aquele cheiro penetrante do vento de chuva, de terra e plantas molhadas que se infiltrava pelos frisos da janela.
Minha família nunca existiu, pensava João, a mãe, até se esforçava para unir aqueles seres que a única coisa que tinham em comum era o próprio sangue. O pai, jamais fez qualquer esforço nesse sentido, minhas irmãs apenas queriam casar, mas não ambicionando uma melhor condição de vida, ou mesmo a procura da sua felicidade, queriam era um pretexto para sair de casa da forma menos indigna possível.
A mais velha acabou morando em Nova York e a caçula foi-se embora para a Nova Zelândia argumentando abertamente que o dia em que algum membro da família morresse, não conseguiria chegar a tempo para o velório (odiava carpideiras, mas tinha verdadeira alergia à própria família, mesmo tendo convivido com ela poucos anos).
Aquilo nem sequer era carma, dizia João, era o reencontro dos desesperados.
Os gritos do silencio e do desamor de uma família que nunca existiu.
Ele não sabia se algum dia chegou a amar alguém, apenas sentia falta da dor, do prazer e dos cheiros da sua infância.
De fato, jamais esqueceria os cheiros do colégio, do natal e da Betânia, mas o que de fato marcou a vida do João, era saber que o dia do seu aniversário, ano após ano, tinha cheiro de nada.
HB