Desta vez, através do meu conto “Tenda dos Milagres”, a HOMENAGEM vai para meu amigo de infância Jesús Hernandez Torres.
O inesquecível vencedor do concurso de declamação do Colégio México, no significativo 1959, em que concluimos o nosso curso ginasial.
A poesia recitada por Chuy Hernandez na ocasião, “O Brindis del Bohemio”, foi a fonte inspiradora deste conto em que tentei adaptar o ambiente do romantico século XIX, aos folclóricos botequins cariocas, verdadeiros centros inspiradores dos compositores e poetas populares brasileiros:
Aquele bar de subúrbio era o próprio pé sujo; esgoto a céu aberto correndo pela rua, ovos duros coloridos e moelas gordurosas o caracterizavam como um legítimo bar carioca, digno de São Jorge e de Iemanjá. Todavia, alguma coisa o tornava diferente, algum atrativo fazia com que a frequência fosse mais intensa do que a dos congêneres do bairro. Pelo menos é o que poderia se supor pela quantidade de desocupados que atraia de dia e de noite. O dominó e o carteado corriam soltos nas mesinhas improvisadas na calçada e a televisão, afixada numa prateleira de canto, era ligada de quando em vez, para assistir aos jogos do Vascão.
Não era então seu aspecto físico que, pouco ou nada diferia das centenas de botequins de qualquer bairro. Nem sequer o nome “Nossa Senhora de Fátima”, fazia qualquer diferença.
Para aqueles que nunca frequentaram o bar do português seria impossível identificar os verdadeiros atrativos da espelunca; mesmo para Dom Joaquim, o dono, era um mistério. Ele sempre achou que o segredo do sucesso, o que realmente mantinha seu estabelecimento sempre cheio, eram os bolinhos de bacalhau da sua patroa.
– É verdade que “os repentistas” de vez em quando também são um atrativo, cada um é pior do que o outro, dizia, mas acho que sem eles a vida perderia seu encanto.
Seu Crispino, esperto, fanfarrão e relapso, trajando sempre preto, era um verdadeiro ator, parecia ter saído de uma comédia francesa do século XVI; o professor Anísio, nordestino do interior das Alagoas, confortavelmente instalado nas suas alpargatas tipo São Francisco e seu indefectível chapéu de couro, regalava seus ouvintes com as escabrosas histórias do bando de Lampião e as miraculosas andanças do padím pade Cícero pelo sertão da Paraiba; O Fagundes, poeta inveterado e eterno galã, sem idade aparente e aparentemente sem vergonha, alegrava as manhãs de domingo e assim por diante, o “Nossa Senhora de Fátima” tinha-se tornado de fato um verdadeiro “point” de intelectuais e merecia qualquer sacrifício, inclusive seu eventual mau cheiro ou desconforto.
Os tais dos “repentistas” como chamados por Dom Joaquim, eram na verdade os filósofos da vida que nos seus plantões no bar tudo questionavam, colocando no crivo da razão, tanto a economia, como a política (notadamente a ditadura dos malfadados militares que conseguiram, como ele costumava dizer, atrasar este país em mais de duas décadas) até a necessidade da aplicação imediata da lei da ficha limpa e a especulação sobre os rumos do julgamento do mensalão.
– Evidente que o Lula sabia de tudo, discursava o jovem “Rui Barbosa” encarapitado numa cadeira desbotada e enferrujada, assim apelidado por ser um atuante advogado das causas impossíveis.
Ninguém se lembrava de como nem porque, mas os temas abordados naquele dia quente de inverno eram relativos aos milagres e aos efeitos da passagem do tempo sobre a humanidade. As intervenções dos presentes variavam entre “a vida é o próprio milagre”, “o tempo é inexorável” e “a história se fez minuto a minuto ao longo dos séculos”.
Como sempre, qualquer conclusão seria impossível, mas que prazer incomensurável ouvir aquele grupo brilhante, cujo raciocínio e eloquência eram inversamente proporcionais à quantidade de doses absorvidas ao longo dos discursos.
Dom Joaquim fazia a festa porque nestes dias em que os repentistas decidiam questionar o mundo, ele faturava o dobro. Nem sequer perguntava se queriam mais uma cerveja, ou uma sardinha portuguesa frita na hora, apenas gritava para Dona Marina: sai mais uma, minha flor de Trás-os-Montes.
Seu Crispino decidiu futucar mais fundo e disse na sua vez:
– Vocês são muito ingênuos companheiros, milagres, como entendidos pelo povo, qualquer um faz, o problema é que desconhecendo a origem do fato, a nossa ignorância os torna milagres de imediato.
– Quer ver, dizia Crispino, jogando a capa preta sobre o ombro esquerdo; para mim, milagre é aquele em que efetivamente são contrariadas as leis da física; por exemplo, uma mulher dar à luz um leão. Aí não tem truque, raciocinava perante a pequena plateia embasbacada, isso simplesmente, seria um milagre.
– O xente, retrucou o professor Anisio, meio invocado por achar que o comentário ia de encontro aos claros milagres do padim Cícero,
– E a minha tia Raimunda que foi curada de câncer terminal? Vociferou, sem dúvida alguma a respeito do milagre alcançado pela tia.
O preclaro Fagundes, que aproveitava qualquer oportunidade para recitar seus versos “del alma”, interveio cambaleante, com um improviso sentido:
– Vejo no seu rosto companheiros, as lágrimas e os risos, origem do prazer e dos feitiços.
De olhos fechados, tirando forças do seu passado, continuou:
– Aproveito este momento para brindar,…………..e após uma longa pausa em que continuava a procurar o fôlego que lhe faltava, desembuchou de supetão:
– Brindo pela mulher, mas não por aquela na que achais consolo na tristeza, meus irmãos, não por naquela que nós oferece sua artificial beleza e seu riso perfumado.
Neste momento, já com a atenção de todos os presentes, aspirou fundo e tentando superar a dificuldade de uma língua cada vez mais enrolada, emendou:
Brindo pela mulher, mas por aquela que me acolheu em seus braços,
por aquela que me aninhou com seus abraços,
por aquela que me deu em pedaços seu coração inteiro.
Brindo por ela companheiros, a que deu a luz este leão, já sem garras e sem juba, perpetuando durante todos os minutos da minha vida o verdadeiro milagre da existência.
Sob palmas, vaias e assobios da improvisada plateia, Fagundes deixou o corpo e o copo caírem sem sentir, tinha acabado de provar que a vã filosofia, desde que sentida, podia ser criada em qualquer lugar, em qualquer botequim.
HB
Ideia poética inspirada na obra “El Brindis del Bohemio”
do poeta romântico mexicano Guillermo Aguirre y Fierro (1887-1949).
O titulo deste conto é homônimo (plagiado) daquele dado por Jorge Amado a seu romance de 1969.