O CONTO DA INIQUIDADE (DA SAUDADE E DA POESIA)

José Paulo Moreira
Este conto, que intitulei “Da Iniquidade (da Saudade e da Poesia)” foi escrito exatamente um ano atrás. Gosto dele de forma especial por permitir também a expressão poética e neste caso por mostrar os efeitos da saudade (que conhecemos de longa data porque a morte de escravos pelo popular banzo, a melancolia negra, nos mostrou ao longo do período da escravidão, a dor que mata).
Nada melhor neste dia, em que comemoramos a “Consciência Negra”, do que a historia do Marcio, apaixonado, poeta e romântico (pleonasmo deliberado) a ponto de morrer a cada instante pela mulher amada:

A consciência do viver voltava lentamente.
Marcio, de olhos ainda fechados, resistia enfrentar o novo dia.
Contou depois que sentia o corpo flutuar e não sabia ao certo, se era o próprio pensamento, que o aterrorizava, ou se era ainda o sonho que amargava. Ao parecer, as forças, todas, o teriam abandonado. Gritava que queria desaparecer e matar a saudade. A responsabilizava por não conseguir se levantar.
– Restam-me apenas as poesias, seu cheiro e a magnífica imagem que dela faço no seu vestido branco de tule esvoaçante, falou Marcio finalmente, quase balbuciando. Ao parecer, alguma fotografia em preto e branco insistia em lembra-lo de um rosto sorridente, distante e frio, porém falso. Não é o dela, é o de alguém que teria vivido naquele corpo quando ainda não tinha sido meu, completou já sentado na beira da cama.
– Não consigo me lembrar da sua voz, continuou Marcio sob aparente tortura interior.
O quarto fedia sem odor definido, era uma mistura de mofo, suor e parafina, agravado pela falta de ar. Cláudia sua companheira, mantinha as janelas fechadas com receio de expor seu amado aos riscos do vento que no mês de julho se infiltrava até os ossos.
– As janelas parecem de papelão, desculpou-se quando reparou que meu olhar insistente tentava traduzir um pedido silencioso de ar para o paciente.
– Voragem arrebatadora que me arrasta para o vazio. Não consigo pensar, me doe o corpo todo e a cabeça, disse Marcio, sem se importar com as condições do quarto.

Quando penso em ti,
não mais meu coração se excita.
A ternura invade tua lembrança,
não mais me ardem as entranhas,
nem teu hálito me corta o pensamento.

Tratava-se de mais uma crise nervosa, Marcio não conseguia assimilar o seu passado recente, muito mais pela culpa que sentia do que pelos fatos em si. Seu caso não era para um clínico como eu. Não queria mais me envolver, mas não podia abandona-lo. Após a avaliação inicial, verifiquei seus sinais clínicos. Aparentemente normais, decidi por uma medicação simples, além de recomendar o necessário repouso e obviamente a visita ao psiquiatra, muito mais para conter sua tendência à depressão e ao suicídio do que para um tratamento específico.
Em condições normais teria conversado com ele, mas não era o momento adequado, sua companheira, sempre gentil e sorridente, parecia ser a pessoa certa e decidi conversar com ela. É uma prescrição simples falei, um relaxante muscular e um analgésico forte serão mais do que suficientes. Peça para beber muito líquido e não o deixe sozinho, recomendei.
A Cláudia me disse que ele estava sem noção. Não sabia o tempo que teria transcorrido desde o dia em que cremaram o corpo da ex-companheira.
– As chamas me atingem até hoje, sinto o calor a flor da pele, o rosto repuxando até ficar sem idade e as lágrimas se esgotarem na tentativa de apagar a dor, declamava.

Abençoadas insônias porque dão frutos,
madrugadas eternas, ânsia de viver.
A mente (mente) e me deixo levar, (in)consciente,
pelo sonho reparador de ver-te novamente.

Seus versos, incompletos, pareciam vir à mente atropelando os fatos. Marcio sentia-se só e abandonado, mas principalmente culpado, muito culpado.
– Não existe mais vida no planeta, apenas eu a sonhar e o medo de viver que experimento neste instante, repetia sistematicamente aos borbotões.
– Ela se foi, mas não me larga nem por um instante, continuou. Abandonou-me, sem nunca ter ido embora e a Claudinha sabe disso.
Claudinha, a nova companheira, era apaixonada por ele, capaz de se dar sem nada em troca, beleza escondida sem vaidade e sem idade, de quem dá valor as coisas simples, alegre e realizada. Amando unilateralmente, mas com a segurança de quem sabe que o amor pode ser conquistado, sem pressa e sem agonia.
Entrou na vida do Marcio sem cobrar absolutamente nada e até acho que ele entendeu seu sacrifício e sua paciência. Conheciam o jogo e apostaram todas suas fichas.
– Reviveu-me lentamente e aos poucos voltei a sorrir, inicialmente sem compreender sua insistência em promover a vida alheia; reagi na melhor prática da defesa, mas lentamente, o sentimento de gratidão invadiu meu coração. Nada fazia pensar num relacionamento duradouro. Nada a ver com sua aparência física ou com a cor dos seus olhos, que nunca fizeram diferença, mas apenas com um coração vedado para os sentimentos.

Meditar é sono profundo, insônia perene, ausência total de sonhos,
é abandono da matéria, egoísmo do espírito.
Falta de vontade de retornar à prisão,
necessidade vital de continuar a viver……intensamente.

– Quando acordei, ela também tinha ido embora. Sem fogo eterno, sem pecados, sem obsessões nem sofrimentos. Meu egoísmo não permitia a consciência dos fatos; foi embora porque quis, pensei. É melhor só do que mal acompanhado (achei que estava acordado). A ausência de saudade marcava meu cinismo debochado. Tempos depois, a mesma saudade, outrora inexistente, tornou-se incontrolável. A ânsia de amar lembrou-me a necessidade de viver e os versos do Nélson e Frederico profetizando o fado da perda irreparável do ser amado:

“Saudades são fé perdida
são folhas mortas ao vento
e eu piso sem um lamento
na tua rua ao passar”. (*)

HB 19/11/2012
(*) Trecho do fado “Rua dos meus ciúmes” de Nelson de Barros e Frederico Valério.

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