Se bobear a Joana não nasce. Na época ainda sem saber os verdadeiros motivos, que só descobri mais de vinte anos depois, fui insistente e chato com minha mulher, mas estava convencido de que queria criar pelo menos dois filhos e se possível dez. Sempre achei que criar apenas um filho era ruim inclusive para a própria criança e só não deu para levar enfrente a minha vontade de ter uma família enorme por falta de convicção e talvez de dinheiro, além de nunca ter contado neste sentido, com a colaboração da minha cara metade.
Eu queria que seu nome fosse Dorotea, mas fui derrotado em todas as instancias, inclusive a própria Joana quando soube, achou o nome ridículo e cafona. Dorotea na verdade, era minha forma de protestar, eu tinha tido uma namorada alemã com este nome, além de ser o nome de batismo do herói mexicano Pancho Villa (Doroteo Arango).
Achava todos os nomes de menina uma mesmice que variava de Patricinha até os nomes, digamos, mais autóctones, como Rose (com todos os seus derivativos, como Roselena Rosilene, Rosicleide, Rosilda, Roseland e outros menos cotados) Milenes, Emilinhas e Emilenes, Janainas, Jaciras, Jandiras e Joelmas, Nilzas, Neuzas e Neumas, sem falar nas sofisticações emergentes como Jacqueline, Kateline, Estefany, Vanessa, Pámela, Suelen e outros que continuam a variar em função das figuras de destaque internacional ou então a partir dos novos enlatados televisivos. Merecem destaque pela sua utilização cada vez mais difundida, àqueles bem “chics”, de influencia francesa todos terminados em “e”, como Michele, Gabriele, Manuele, Daniele e até Tatiane, ou então o mais recente coqueluche dos fãs da realeza, o misto anglo-francés considerado a última moda entre as mães jovens para ser colocado nos seus pimpolhos: “DAIANE”. Evito mencionar nesta confissão, assumidamente preconceituosa, por acha-los impraticáveis para minha filha, os nomes populares que ainda tomam conta da noite nas principais metrópoles do País, tais como Sheila, Shelda, Shirley, Odete, Odara, Nina, Rita Cadillaque ou Vilma Star.
Em determinado momento cheguei a ficar preocupado porque parecia que a humanidade tinha se esquecido dos nomes simples, daqueles que tem equivalência em todas as línguas, como Mario e Maria, Pedro e Petra, João e Joana, e inclusive dos nomes bíblicos tradicionais como Sara, Susana, Esther ou Martha.
A mãe acabou vencendo e achei melhor que o privilégio de indicar o nome dos filhos fosse dela, já que quatro anos antes ela já tinha escolhido o nome do Bruno.
Conheci Joana há exatos 23 anos (em 06/01/80) já enrolada na tal camisa de força que botam nas crianças para não furar os próprios olhos, na terceira fila do berçário da Casa de Saúde São José. Finalmente tinha dois filhos e ambos eram cariocas, Bruno de Botafogo e Joana do Humaitá.
Extremamente bochechuda, muito cabelo (liso, preto e espetado como todo filho de mexicano ou de oriental) e no momento quase roxa porque tentava espernear sem consegui-lo. A identifiquei de imediato e pensando alto disse, nossa, mas que menina feia, ao tempo em que sem graça acenava, agradecendo a enfermeira que tinha ido junto comigo para me ajudar a identificar a menina. É claro que mesmo que tivesse cem “baixinhos” (em espanhol são “enanos” mesmo) a teria identificado sem hesitar. Todavia, neste exercício de pensamento em voz alta não percebi que tinha companhia, uma senhora mais feia que a minha filha e claro bem mais velha do que nós dois juntos, ao escutar minha decepção feita verbo, soltou a seguinte gracinha que nunca mais esqueci: “É a sua cara moço” e sorria para dentro sem parar como espiã chinesa após ter conseguido a informação que desejava. Nunca mais a vi, mas desejaria que soubesse que minha filha tornou-se uma mulher tão linda que gostaria mesmo de poder ter a sua cara.
O Bruno efetivamente nunca gostou de fuzis, mas a Joana em recente conversa, me convenceu de que teve sua fase de “barbies” e companhia Ltda. envolvendo-se efetiva e afetivamente com as baixinhas de trapo e de vinil. Na verdade eu a situava mais entorno dos bichinhos de pelúcia, porém em qualquer hipótese, se o Bruno nada tinha a ver com o Juan do poeta mexicano, a Joana então, nem de longe lembra àquela “Margot que canta em madre transformada, y arrulla a su hijo que jamás se queja, ni tiene que llorar desengañada, ni el hijo crece, ni se vuelve vieja”.
Espírito jovem ao contrario do irmão, quer passar por todas as experiências, não se liga em coisa alguma e ao mesmo tempo está em todas e curte a sua beleza e a sua juventude como se fosse acabar a qualquer momento. Nenhuma destas constatações é bom que se diga, resulta em detrimento da sua inteligência da sua responsabilidade e do seu gosto pelo trabalho e pelos desafios.
A linda mulher que tenho como filha é a própria menina “pó de arroz” e não apenas por ser torcedora do “fluminense”, mas por adorar festas, reuniões, espetáculos em geral e um “social” digno de fazer inveja ao mesmo Ibrahim Sued.
Cheia de energia, verdadeiramente incansável, tem mais amigos do que qualquer candidato a vereador precisa para se eleger. Faz o gênero “rato de academia de ginástica” e me enlouquece conscientemente ao iniciar seu périplo citadino após a meia noite, quando o irmão já recolhido aos seus aposentos, se encontra no quinto sono.
Determinada até a teimosia sempre fez o que quis, independentemente de conselhos, sugestões ou mesmo proibições. Consegue o que quer e vence sempre pelo cansaço; lágrimas? só quando absolutamente necessárias. Assim foi com as festinhas de sábado a noite, com a primeira tintura de cabelo, com a primeira viajem, com o primeiro “piercing”, com a primeira tatuagem e até com a primeira cirurgia plástica (eu tentei ser contra tudo, inútil e sistematicamente). Ainda acho que terminou com um dos seus primeiros namorados porque mesmo sendo um verdadeiro “gatão” a futura sogra não permitia que passassem o fim de semana em Búzios. Posso estar enganado, de repente apenas não preenchia as expectativas.
Nesta ocasião me proponho a relatar um fato acontecido há alguns anos, que mostra claramente sua personalidade e principalmente suas truculentas estratégias de ação:
Fim de século, talvez 1997 ou 98. Talvez antes, só não quero admitir uma data mais precoce pela posição ridícula em que me colocou.
Verdadeiro pai de primeira viagem, mais idiota do que ingênuo, cheio de filosofias e de diálogos que com ela nunca deram certo, acabei passando minha primeira noite sem dormir por sua causa, perante a “natural” e “lógica” visão que minha querida e aborrecente filha, tinha da vida.
Hoje em dia, por razões que ainda não consigo compreender as crianças iniciam a vida noturna quando os jovens da minha geração já estavam voltando para casa. A minha primeira namorada tinha permissão para voltar ao lar até uma hora da manhã. Já eu, macho e com 14 anos bem vividos só poderia voltar até meia noite, como verdadeiro cinderelo de ocasião pelo medo paterno de me tornar abóbora.
O fato é que por razões esquecidas na voragem do tempo, acho que a mãe tinha viajado com o irmão para Buenos Aires e ela, aproveitando para singrar os mares nunca dantes navegados (apenas sendo mal e porcamente vigiada pelo idiota do pai) se dispunha, sem ninguém saber, a aproveitar como nunca seu primeiro sábado, digamos livre.
Era fim de ano, comemorava talvez uma das tantas formaturas e colações de grau que neste país acontecem desde o “CA”, famoso Curso de Alfabetização a que as crianças são obrigadas para poder ingressar no Curso Primário. Vestido comprado ex-professo, penteado de cabeleireiro ou melhor dizendo “coiffeur”, unhas pintadas adequadamente, salto ligeiramente alto e maquiagem de máscara ritual (aparentemente discreta) costumam ser as armas destas tribos de patricinhas para atacar a vida no seu cada vez mais precoce despertar.
Com a princesa lá de casa não poderia ser diferente. Naquele sábado livre, iniciou sua preparação desde cedo e já foi logo avisando que sería uma noite especial, comemorativa (junto com a turma que a gente nunca chega a conhecer e quando conhece, torna-se difícil reconhecer porque são todas iguais, inclusive no cumprimento e na cor do cabelo) e ainda por cima fazia questão de que fosse inesquecível.
Primeiro tentei me aliar ao inimigo (se não fores capaz de vencer negocia, dizia para os meus botões) eu vou contigo filha, nada mais satisfatório para um pai do que ver a filha se formar. No inicio não respondia, depois falou de um tal de mico que só alguns anos mais tarde descobri não ser apenas um bicho.
Eu falava sem parar (o que é a minha condição normal quando protesto), mas como sempre ela não me ouvia, como nunca antes me ouviu e como constatei com o passar dos anos, continuaria a não me ouvir sécula seculorum. Tratava de argumentar que a mãe não estava presente e algumas outras bobagens na pretensão de que não chegasse tarde de mais, mas como sempre tudo em vão.
Eu me questionava sobre a verdadeira autoridade paterna que deveria exercer, em momentos pensava em tranca-la dentro de casa mas de imediato me dizia, mas que classe de pai você é? Não confia na própria filha? Será que você já esqueceu seus (recentes) anos de juventude?
Os preparativos demoraram tanto que eu cheguei a pensar que ela tinha se esquecido da bendita festa comemorativa. Falsa ilusão, como verdadeira Cinderela às avessas, mal terminaram de tocar as doze chamadas do carrilhão imaginário do meu coração (meia noite em ponto) quando a porta do quarto se abriu, aparecendo a mais linda das princesas (de verdade) que eu já tinha visto, capaz inclusive de fazer com que o vulgar lacaio a sua frente (eu, o pai) se rendesse aos seus mais mínimos e reais desejos.
A briga mudou de tom. O lacaio não mais tentava impor, nem mesmo negociar, apenas sugeria, dava sutis conselhos a respeito dos cuidados para com os fantasmas da noite na floresta. Suplicava e sussurrava. Dava leves toques que variavam desde os cuidados para com o vestido de sonho que ela vestia com orgulho e singularidade até a forma de manter o telefone celular ao alcance da mão para qualquer eventualidade.
Despedimos-nos ternamente na porta de casa, a eternidade ritual do elevador subindo até o décimo andar para mim se transformou em escassos segundos, apenas suficientes para dizer: divirta-se muito minha princesinha, minha flor de zempasuchitl, se a festa estiver muito chata me ligue que irei correndo apanha-la no meu sempre disposto corcel (ou foi carro que eu falei, não me lembro). Com o elevador descendo, provavelmente já na altura do sexto andar, ainda tentei gritar que me liga-se pelo menos de hora em hora, mas acho que já era tarde de mais, como sempre, desta vez também não ouviou meu apelo.
Decidi dar uma de pai-herói e como se nada tivesse acontecido (mas com o coração em frangalhos) comecei uma leitura com a maior concentração de que era capaz. Tentei a TV., o som maravilhoso da ópera Don Giovanni que sempre teve o poder de me acalmar, minha coleção de selos, a meditação transcendental e até um chá de boldo ou de camomila (não me lembro mais) tudo em vão. Obviamente nada resolvia. Eram apenas 12h45min. e o telefone só tocaria lá pelas três da matina. Acho que roer unhas foi a única atividade que com certeza não me acalmou, mas que efetivamente me ajudou a passar incólume pela eternidade do desespero.
Nestas circunstancias, o telefone tocando às três horas da manhã chega a ser um verdadeiro bálsamo, um lenitivo que efetivamente nos traz de volta a este planeta quase sem sentir.
Era ela, minha filha, minha flor de zempasuchitl, a verdadeira princesa (que eu já imaginei em perigo). Rocinante que me aguarde porque pronto estava para salvar a donzela fosse qual fosse a encrenca em que estivesse metida.
Mal conseguia compreender seu pedido de socorro, porque a música de fundo na verdade era música de frente, só dava Heavy Metal ou coisa parecida. Sua voz parecia se perder no infinito e tive que fazer um enorme esforço para compreender que não se tratava de um pedido de ajuda, mas de um aviso (frio e insensível) de que a tal festa comemorativa, em vez de tornar-se chata, estava pegando fogo e que na verdade lhe sería impossível abandona-la naquele momento.
Consegui protestar, gritei e até xinguei pela incompreensão da princesa para com seu velho pai, mas acho que já tinha desligado dois ou três minutos antes.
A agonia se eternizava, ligações cada vez mais distantes e espaçadas me enlouqueciam. Nunca conseguia dizer o que se passava pela minha mente e muito menos pelo meu coração, apenas era obrigado a escutar a fala entrecortada e longínqua que entre risos tentava me acalmar dizendo que estava tudo bem e que daí a pouco estaria voltando para casa. Das cinco até às sete horas da manhã cessaram as noticias e tive a nítida sensação de que estava tudo perdido, nem com meu fiel escudeiro Sancho sería capaz de resolver o problema caso a Dulcineia estivesse precisando de mim.
O sol abrasador do verão carioca as sete da matina já anunciava mais um dia abafado e cansativo. Todavia, era domingo, daria para descansar um pouco se a princesa já estivesse chegando em casa.
Mais uma vez o infernal celular (que não sei por que insistiu em permaneceu a noite toda fora da área ou desligado como informava a então Telerj) tocou numa derradeira vez, porque como a princesinha me contou rapidamente estaria acabando a bateria, e ela só, cumprindo o seu dever de filha consciente da preocupação irracional dos pais, me avisava que a turma, após uma visitinha a Yemanjá nas águas do posto nove (Ipanema) estaria rumando para um hotel da Av. Vieira Souto a fim (porque ninguém é de ferro) de desfrutar de um opíparo café da manhã.
Fez seu aparecimento triunfal no nosso lar quase às nove da manhã.
O Pai dela com cara de legítima indignação abriu a porta e de supetão lhe disse: espero que você tenha consciência do que fez, passei a noite toda acordado te esperando e você me aparece às nove horas da manhã?
Claro que não tinha consciência nenhuma e ainda respondeu perplexa pela incompreensão e insensibilidade do pai: “dá um tempo daddy estou morta de cansaço, disse, você não sacou que passei a noite toda dançando?” completou. E mais não disse por que rumou de imediato para seu quarto e sem sequer tirar a maquiagem, (acho que nem sequer escovou os dentes como teria sido o desejo e a recomendação da mãe) dormiu a perna solta o domingo todo, estragando também (sem nenhuma intenção, é claro) a programação dominical do seu velho pai, que à época contava já com mais de cinqüenta anos e que provavelmente teria gostado de leva-la ao zoológico, ou quem sabe a algum teatro com programação infantil.
Desde então me esforço na tentativa de rever os meus conceitos, mas com certeza a lição serviu para conhecer o famoso abismo que continua a separar as gerações cada vez mais.
A última tatuagem e o último “piercing” já não me incomodaram tanto, acho que nem protestei, mas continuo com saudades daquele seu namorado “gatão” cuja santa mãe não o deixava viajar com a princesinha, com minha flor de zempasuchitl para Búzios (e o que é mais surpreendente, conseguia).
06 de janeiro de 2003