O MUNDO DOS OULIPIANOS

AM Gato Gravura 50x35cm. (s. moldura) Recentemente tomei conhecimento do que era o OULIPO (todo dia se apreende alguma coisa, não é verdade?) e inicialmente como todo ignorante que se preza, ou no mínimo, que não tem uma noção clara do tamanho da sua ignorância, achei que ninguém mais no mundo teria ouvido mencionar  esta esdrúxula expressão, certamente um neologismo como tantos que se criam todos os dias a torto e a direito. Estava errado.
A partir de alguns textos publicados na “Revista Continuum” / São Paulo, 2008 e Itaú Cultural, além da atinada bússola (régua e compasso) do “poetiso” Caio Meira, descobrimos que, quando em 1960, Raymond Queneau e o matemático François Le Lionnais, criaram o “Ouvroir de Litttérature Pontentielle” (OULIPO), provavelmente nem sequer suspeitavam do amplo sucesso e da longevidade que viria atingir o seu empreendimento. Sob a influencia de Raymond Roussel, Bourbaki e da Patafísica, a Oficina de Literatura Potencial pretendia realizar experimentações de estilo a partir de antigas práticas retóricas, mas também inventar novas “restrições”, as hoje conhecidas e até famosas “contraintes” (constrangimentos? limitações?), que pudessem guiar o esforço de criação.
Em encontros marcados sobre tudo pelo humor, explorar as potencialidades da linguagem, injetando noções matemáticas na invenção romanesca ou poética, era o que queriam esses “oulipianos” que se diziam “ratos que constroem eles próprios os labirintos de que se propõem sair”. O sucesso da publicação dos seus textos durante uma década, levou-os à organização dos primeiros estágios. Rapidamente, eles atraíram um público tão numeroso que se viram obrigados a escolher entre continuar com suas pesquisas e produções ou organizar oficinas.
A partir de 25 de novembro de 1960, data em que o grupo foi fundado em Paris, seus membros reuniram-se mensalmente durante anos, para discutir o conjunto dos seus experimentos e invenções.
Embora no Brasil não seja ainda tão conhecido, o “Oulipismo” não deixou de se expandir entre autores (vivos ou já falecidos), em oficinas de escrita em vários países, e que até hoje entusiasma escritores, professores, estudantes, leitores e aprendizes (como eu).
Abusando da minha declarada ignorância e lembrando do movimento “maneirista”, que acabou invadindo o mundo das artes a partir do renascimento (à maneira de…), quero acreditar que o “oulipianismo” (mesmo inconscientemente) se manifesta, cada dia de forma mais intensa em todas as expressões artísticas.
O desenho que ilustra esta inserção, por exemplo,  um inocente gatinho em nanquim sobre papel (preto no branco) de autoria do Aldemir Martins, conhecido artista plástico cearense, me parece o supra-sumo do “oulipismo”, na medida em que o autor criou tantos e tão específicos “constrangimentos” ou “limitações” à criação da sua obra que, provavelmente sem saber, poderia liderar o movimento “oulipiano” nas artes plásticas. O rosto do gatinho é bem maior do que a tela escolhida para pinta-lo, as linhas retas parecem uma imposição descabida para representar um corpo normalmente roliço deste representante do reino animal, a utilização do preto sobre fundo branco, parece também uma limitação quando se tem todo o arco íris disponível, a evidente desconstrução do desenho para apenas induzir a mente do espectador a pressupor a presença de um grande felino incontido no seu horizonte visual, parece o maior de todos os constrangimentos criados pela livre e espontânea vontade do autor e assim por diante.
Este movimento é tão desafiador e envolvente que, com base na própria ignorância declarada (ausência de medo por total inconsciência da responsabilidade necessária para participar deste tipo de expressão artística) arrisco a seguir, duas poesias da minha autoria que encerraram o profícuo trabalho de 2013, abrindo-me as portas de um 2014 sorridente, promissor e cheio de luz.
A primeira foi intitulada “POESIA SEM FIM” (para ser lida na penumbra, por ser eterna, sem parágrafos, num só fôlego, apenas pontuado pelo ritmo da descoberta) e a segunda, sem título, por ter sido estruturada a partir de vinte e uma palavras aleatórias (constrangimentos) sobre as quais teria que ser criada uma composição poética coerente, com tema e objetivo definidos, com o uso obrigatório de todas as palavras escolhidas a esmo, sem faltar ou suprimir qualquer uma delas.
Espero que gostem.

POESIA SEM FIM (para ser lida na penumbra, por ser eterna):
as curvas do teu corpo totalmente relaxado, ofereciam uma paisagem singular, sem defeito, sem inicio e aparentemente sem fim, produzindo um verdadeiro êxtase que me impedia acreditar o que os meus olhos teimavam em mostrar e desencorajando qualquer iniciativa que me levasse a tocar aquela criação divina, decidi, superando reticências e inibições, me aproximar lentamente até sentir o teu cheiro penetrante na vã tentativa de decifra-la: a linha da panturrilha parecia se prolongar infinita além da coxa e deveria continuar a se elevar delineando o perfil das tuas nádegas voluptuosas, me deixando entrever de forma absolutamente discreta, o inicio das tuas costas, atiçando a lembrança dos teus seios, assaz protuberantes que, mesmo ocultos nas sombras geradas pelo próprio corpo, completavam a beleza escultural que Deus te deu, curiosamente emoldurada por um facho de luz interna, de cor azul profundo, aparentemente sem origem, misturando, num só clarão desconcertante, o divino e o profano, ao lembrar com prazer e satisfação, a luz apenas produzida pelo espírito, a única que me permite ver a realidade, a que me permite sentir as emoções provocadas pela perfeição desse teu perfil que ( já sem forças e incapaz de me opor à realidade) acabei recortando com os lábios, para descobrir assim, finalmente, as dádivas com que o Criador contempla de quando em vez as suas criaturas: “a revelação de um prazer que nada tinha de profano, se oferecendo, absolutamente divino aos olhos deste eterno apaixonado que, naquele momento, além de ver em profundidade, sentiam também tua pele e até o odor característico, mistura de flor de laranjeira da china e sexo e que ficaria gravado em minha mente…para sempre”, mesmo privado da visão há muito tempo, apenas olhando e sentindo através dos olhos do espírito, criadores da própria luz, fui capaz, depois desta experiência maravilhosa, de te eternizar nesta e em outras vidas, cristalizando em minha mente esta visão sem fim (por ser eterna) através da infinita misericórdia de um Pai dadivoso que permitiu o desenvolvimento dos meus outros sentidos, certamente imortais e generosos (por integrarem o esplendor da minha consciência), apenas para presenciar ao vivo e a cores, a magnificente beleza da sua criação infinita.
HB
Natal de 2013

VINTE E UMA PALAVRAS ALEATÓRIAS:
( ) Intimo
( ) Rastejando
( ) Primordial
( ) Proprietário
( ) Ritual
( ) Celebrar
( ) Porção
( ) Menor
( ) Patrocinar
( ) Prefixado
( ) Seita
( ) Lançar
( ) Cinco
( ) Orientar-se
( ) Gritar
( ) Casaco
( ) Plural
( ) Saindo
( ) Continuidade
( ) Sala de Estar
( ) Crente

Nada mais íntimo do que a prece, quando flagrada saindo (calada) do coração ferido,por nos permitir celebrar o ritual interior, primordial à continuidade da elevação espiritual.
Crente de que qualquer seita, mesmo quando menor, por vezes massacrada,
pode (e deve) gritar a vontade (e em silêncio), ao ar livre (em total contemplação), ou mesmo na sala de estar (com indignação),
para descobrir as cinco grandes verdades para orientar-se e patrocinar a verdadeira e desejada transformação interior.
Lançar com mão firme , feito flecha ferina, por vezes envenenada, a porção humana que rastejando desabrocha em humildade incontida, para descobrir que,
ninguém é proprietário de quem quer que seja, nem tem carma prefixado.
Necessário é tirar o casaco da vaidade para projetar, numa ótica plural e universal, a própria vida.
HB
31/12/2013

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MENSAGEM DE ESPERANÇA

80787Uma mensagem de esperança, sem data, sem religião, sem ideologia; apenas oportuna por renovar na alvorada de um novo ano, a confiança no gênero humano.
É minha discreta homenagem ao intelectual, escritor, jornalista e principalmente defensor incansável da justiça , da igualdade e dos direitos humanos, EDUARDO GALEANO, uruguaio (1940-    ) amplamente conhecido nos meios literários internacionais pelos seus mais de 40 livros, entre os quais sua obra prima, por ter-se tornado um verdadeiro clássico da esquerda latino americana, intitulado “LAS VENAS ABIERTAS DE AMÉRICA LATINA”, publicado em 1971. Galeano na minha modesta opinião, tem a faculdade de tocar as fibras mais íntimas do coração dos seus leitores, não apenas na defesa irrestrita dos valores da humanidade, mas na luta incansável, sem qualquer tipo de preconceito, pelo progresso moral e espiritual dos seus semelhantes.
Assim, (em tradução direta que fiz com prazer e satisfação) ele nos diz, num pensamento atemporal e sempre apropriado:
Tomara que sejamos dignos da desesperada esperança.
Oxalá possamos ter a coragem de ficar sós e
a valentia de arriscarmos a ficar juntos,
porque de nada serve um dente fora da boca, nem um dedo fora da mão.
Tomara que possamos ser desobedientes cada vez que recebamos ordens que humilham nossa consciência ou violam nosso bom senso.
Oxalá possamos ser suficientemente obstinados para continuar a acreditar, contra toda evidência, que a condição humana vale a pena, porque se fomos mal feitos, certamente ainda não fomos terminados.
Tomara que possamos ser capazes de seguir caminhando pelos caminhos do vento,
em que pesem as quedas e as traições e as derrotas,
porque a história continua além de nós e quando ela diz adeus,está dizendo: até logo.
Oxalá que possamos manter viva a certeza de que é possível
ser compatriota e contemporâneo de todo aquele que viva
animado pela vontade de justiça e a vontade da beleza,
nasça onde nasça e viva onde viva,
porque os mapas não tem fronteiras para as almas nem para o tempo.
EDUARDO GALEANO

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FRANÇOISE, MINHA AMIGA, A FRANCESINHA

Paris LibertéJá devia ter contado esta história há muito tempo, mas pelas razões que todos conhecemos, entra dia, sai dia, entra mês, sai ano e encontramos sempre um pretexto para adiar o que às vezes (como neste caso) se torna quase um dever moral.
Nada especial, apenas não sei por que relutei tanto tempo (juro que de forma inconsciente) para apresentar Françoise, minha amiga, a francesinha, para todos vocês.
Tal vez porque para mim as coisas são sempre complicadas, consigo sem esforço complicar aquilo que é simples; por exemplo, Françoise, minha amiga, a francesinha, nem sequer é francesa e até somos amigos e confidentes “ma non troppo”.
Da minha parte posso garantir para Françoise uma amizade quase de infância, mas receio que a recíproca não seja verdadeira. Nem sequer sei se ela tem amigos, é complicada e até egoísta, mas é pura de coração. Seu egoísmo quer me parecer o exercício certo do auto-amor, ela é feliz porque sabe ser feliz, ela ama as pessoas (na medida certa) porque sabe se perdoar e principalmente porque se ama.
É gentil, culta e sensível. Não chega a ser bonita e ela o reconhece, é vaidosa sim, mas a questão da beleza não chega a fazer a sua cabeça. É charmosa e adoro sua forma de ser e de vestir (simples, porém franca, decidida e despojada, porém sempre impecável e arrumada para cada ocasião), um pouco fria para meu gosto, odeia beijinhos e salamaleques que considera sempre dispensáveis.
Todavia, não era nada disso que eu queria dizer, apenas pretendia apresenta-la a vocês porque adoro sua poesia, seus contos e suas crônicas, sempre atuais, espirituosas e com um toque de humor insuperável. Urbanas e rurais, atuais e saudosistas, tradicionais e surpreendentes, tudo aquilo que eu próprio gostaria de ter escrito. Quem sabe vocês também acabam gostando.
Na verdade, Françoise a francesinha é brasileira, (espírito velho e de caráter cosmopolita) nascida no interior das Minas Gerais e para não deixar dúvidas sobre sua origem, viu a luz primeira no próprio Vale do Jequitinhonha. De pai francês (antropólogo) e mãe brasileira (professora), morou quando criança no médio Jequitinhonha, região do rio Araçuaí. Quase como consequência, não gosta de praia nem de chope, mas bebe vinho (sempre branco e absolutamente seco) e morre (literalmente) por um pão de queijo, por um lombinho de porco acompanhado de tutu com torresmo e para arrematar, um bom naco de Romeu e Julieta (e como ela mesma diz muito mais Julieta do que Romeu).
Sempre nos demos muito bem, é amiga e confidente, quase conseguimos falar de igual para igual, sem constrangimentos nem tabus, apenas nos vemos muito menos do que eu gostaria, mas a minha alegria quando nos encontramos se sublima a ponto da minha mulher ficar com ciúmes.
Conhecemo-nos há mais de 40 anos, logo depois de ter chegado à Cidade Maravilhosa, ela vinda da França e eu do México e logo de inicio sentimos que algum elo existia entre nós sem, no entanto, identifica-lo. Hoje sei, sem lugar a dúvidas, que este elo é cultural, é de irmandade e até de pensamento.
Surpreendo-me com as suas opiniões sobre meu trabalho, sempre elogiosas e descubro a cada poesia, ou na sua prosa diversificada que, se eu as tivesse escrito, provavelmente nada mudaria, incluindo os temas escolhidos. Nos mostra sempre sua indignação legítima e a revolta revolucionária entranhada no âmago dos seus escritos, com os quais, obviamente, me identifico.
Por admira-la de forma incondicional (a ponto de considera-la minha amiga), torna-se difícil descreve-la, inclusive porque, a bem da verdade, pouco a conheço (como também, de fato, pouco conhecemos a nós mesmos).
Sei apenas das suas intenções, da sua forma de ver o mundo (da qual compartilho), da sua nobreza de coração e da retidão quase obsessiva, no caminho da (sua) verdade.
Nesta primeira vez entre nós, mostramos sua poesia intitulada “CONFISSÃO” que para a nossa surpresa foi redigida no espelho, aproveitando o reflexo dela mesma, positivo e negativo de uma mesma tomada.
Em fim, de repente, seu retrato fiel, preto no branco, como um entardecer parisiense, em tons de cinza, obscuros e aparentemente tristes…………na Cidade Luz.

CONFISSÃO
(o positivo)
Sou o que penso,
faço o que quero.
Não sou hipertensa,
tenho bom senso.

Sou daqui e
sou de lá.
Gosto de mim,
vivo sem ti.

Não gosto da troca,
minha doença, meu viço,
É a gloria da vida,
meu sorriso, meu vicio.

Teus cabelos ao vento me gritam,
te quero.
Nasci desse jeito,
menina veneno.

Estou satisfeita, mesmo escondida,
não sofro nem penso.
Não choro, te acho, te sinto,
por vezes perdida.

Es minha menina,
à cara metade.
Teu corpo é uma chama,
…….me chama, menina.

CONFISSÃO
(o negativo)

Não sou o que penso,
nem faço o que quero.
Sou hipertensa,
me falta o bom senso.

Não sou daqui,
nem sou de lá.
Não gosto de mim,
nem vivo sem ti.

Gosto da troca,
não é doença nem vicio.
É a tristeza, é a vida,
meu viço, sem siso.

Teus beijos subjugam e prendem,
consciente não quero.
Não sou desse jeito,
só quero o veneno.

Não luto, me entrego,
não sofro pensando.
Rejeito teu pranto,
só peço tua vida.

Não es minha menina,
não tens minha idade.
Teu corpo é uma chama,
……não chama, menina.

Françoise S. D’alambert
Natal, 2013

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O CONTO DA INIQUIDADE (DA SAUDADE E DA POESIA)

José Paulo Moreira
Este conto, que intitulei “Da Iniquidade (da Saudade e da Poesia)” foi escrito exatamente um ano atrás. Gosto dele de forma especial por permitir também a expressão poética e neste caso por mostrar os efeitos da saudade (que conhecemos de longa data porque a morte de escravos pelo popular banzo, a melancolia negra, nos mostrou ao longo do período da escravidão, a dor que mata).
Nada melhor neste dia, em que comemoramos a “Consciência Negra”, do que a historia do Marcio, apaixonado, poeta e romântico (pleonasmo deliberado) a ponto de morrer a cada instante pela mulher amada:

A consciência do viver voltava lentamente.
Marcio, de olhos ainda fechados, resistia enfrentar o novo dia.
Contou depois que sentia o corpo flutuar e não sabia ao certo, se era o próprio pensamento, que o aterrorizava, ou se era ainda o sonho que amargava. Ao parecer, as forças, todas, o teriam abandonado. Gritava que queria desaparecer e matar a saudade. A responsabilizava por não conseguir se levantar.
– Restam-me apenas as poesias, seu cheiro e a magnífica imagem que dela faço no seu vestido branco de tule esvoaçante, falou Marcio finalmente, quase balbuciando. Ao parecer, alguma fotografia em preto e branco insistia em lembra-lo de um rosto sorridente, distante e frio, porém falso. Não é o dela, é o de alguém que teria vivido naquele corpo quando ainda não tinha sido meu, completou já sentado na beira da cama.
– Não consigo me lembrar da sua voz, continuou Marcio sob aparente tortura interior.
O quarto fedia sem odor definido, era uma mistura de mofo, suor e parafina, agravado pela falta de ar. Cláudia sua companheira, mantinha as janelas fechadas com receio de expor seu amado aos riscos do vento que no mês de julho se infiltrava até os ossos.
– As janelas parecem de papelão, desculpou-se quando reparou que meu olhar insistente tentava traduzir um pedido silencioso de ar para o paciente.
– Voragem arrebatadora que me arrasta para o vazio. Não consigo pensar, me doe o corpo todo e a cabeça, disse Marcio, sem se importar com as condições do quarto.

Quando penso em ti,
não mais meu coração se excita.
A ternura invade tua lembrança,
não mais me ardem as entranhas,
nem teu hálito me corta o pensamento.

Tratava-se de mais uma crise nervosa, Marcio não conseguia assimilar o seu passado recente, muito mais pela culpa que sentia do que pelos fatos em si. Seu caso não era para um clínico como eu. Não queria mais me envolver, mas não podia abandona-lo. Após a avaliação inicial, verifiquei seus sinais clínicos. Aparentemente normais, decidi por uma medicação simples, além de recomendar o necessário repouso e obviamente a visita ao psiquiatra, muito mais para conter sua tendência à depressão e ao suicídio do que para um tratamento específico.
Em condições normais teria conversado com ele, mas não era o momento adequado, sua companheira, sempre gentil e sorridente, parecia ser a pessoa certa e decidi conversar com ela. É uma prescrição simples falei, um relaxante muscular e um analgésico forte serão mais do que suficientes. Peça para beber muito líquido e não o deixe sozinho, recomendei.
A Cláudia me disse que ele estava sem noção. Não sabia o tempo que teria transcorrido desde o dia em que cremaram o corpo da ex-companheira.
– As chamas me atingem até hoje, sinto o calor a flor da pele, o rosto repuxando até ficar sem idade e as lágrimas se esgotarem na tentativa de apagar a dor, declamava.

Abençoadas insônias porque dão frutos,
madrugadas eternas, ânsia de viver.
A mente (mente) e me deixo levar, (in)consciente,
pelo sonho reparador de ver-te novamente.

Seus versos, incompletos, pareciam vir à mente atropelando os fatos. Marcio sentia-se só e abandonado, mas principalmente culpado, muito culpado.
– Não existe mais vida no planeta, apenas eu a sonhar e o medo de viver que experimento neste instante, repetia sistematicamente aos borbotões.
– Ela se foi, mas não me larga nem por um instante, continuou. Abandonou-me, sem nunca ter ido embora e a Claudinha sabe disso.
Claudinha, a nova companheira, era apaixonada por ele, capaz de se dar sem nada em troca, beleza escondida sem vaidade e sem idade, de quem dá valor as coisas simples, alegre e realizada. Amando unilateralmente, mas com a segurança de quem sabe que o amor pode ser conquistado, sem pressa e sem agonia.
Entrou na vida do Marcio sem cobrar absolutamente nada e até acho que ele entendeu seu sacrifício e sua paciência. Conheciam o jogo e apostaram todas suas fichas.
– Reviveu-me lentamente e aos poucos voltei a sorrir, inicialmente sem compreender sua insistência em promover a vida alheia; reagi na melhor prática da defesa, mas lentamente, o sentimento de gratidão invadiu meu coração. Nada fazia pensar num relacionamento duradouro. Nada a ver com sua aparência física ou com a cor dos seus olhos, que nunca fizeram diferença, mas apenas com um coração vedado para os sentimentos.

Meditar é sono profundo, insônia perene, ausência total de sonhos,
é abandono da matéria, egoísmo do espírito.
Falta de vontade de retornar à prisão,
necessidade vital de continuar a viver……intensamente.

– Quando acordei, ela também tinha ido embora. Sem fogo eterno, sem pecados, sem obsessões nem sofrimentos. Meu egoísmo não permitia a consciência dos fatos; foi embora porque quis, pensei. É melhor só do que mal acompanhado (achei que estava acordado). A ausência de saudade marcava meu cinismo debochado. Tempos depois, a mesma saudade, outrora inexistente, tornou-se incontrolável. A ânsia de amar lembrou-me a necessidade de viver e os versos do Nélson e Frederico profetizando o fado da perda irreparável do ser amado:

“Saudades são fé perdida
são folhas mortas ao vento
e eu piso sem um lamento
na tua rua ao passar”. (*)

HB 19/11/2012
(*) Trecho do fado “Rua dos meus ciúmes” de Nelson de Barros e Frederico Valério.

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ORGULHO DAS RAÍZES

NIÑOS TRIQUIS

Sempre que tive oportunidade tentei manifestar o orgulho que sinto das minhas raízes. As comunidades indígenas mexicanas foram de fato uma grande motivação para minha escrita, ao ponto de lhes dedicar pelo menos três ou quatro capítulos do meu livro “A Versão dos Vencidos: Uma Ótica Sobre a História do México”, onde destaco sua intensa participação na vida nacional, seus valores e sua luta pela sobrevivência, mas o que de fato sempre me impressionou, além da têmpera herdada dos guerreiros aztecas e da sabedoria e a ponderação do povo maya, foi o seu conceito de nacionalidade e sua pureza de espírito.
A notícia de que as crianças “triquis” (comunidade indígena das montanhas do estado de Oaxaca, no sul do País), descalços, como costumam andar no seio da sua comunidade, teriam ganhado as sete partidas que disputaram no Quarto Festival Internacional de Basquete Infantil (minibasquete) realizado na cidade de Córdoba, Argentina, não me impressionou tanto quanto as condições em que veio a esplendorosa vitória.
Quando vi a fotografia das crianças em plena luta esportiva, evidenciando sua acentuada desvantagem física com relação ao resto dos competidores e soube das carências em geral desta pequena comunidade, cheguei a mais pura emoção por perceber a enorme diferença que faz a determinação e o trabalho para se atingirem os objetivos na vida.
Estes pequenos gigantes (como pode ser apreciado na fotografia ilustrativa) evidenciando sua condição de pobreza ao nem sequer conseguir comprar os tênis, aparentemente indispensáveis à prática do esporte, bateram seus oponentes argentinos por placares verdadeiramente inacreditáveis para este tipo de competição, como nos explica seu treinador Sérgio Zúñiga:
Conseguiram 86 -3 contra os Celestes; 22-6 contra o time da Universidade de Córdoba; marcaram 72-16 na partida contra o time da Central; 82-18 no Hindú; 44-12 contra os Monteéis e 40-16 frente ao Regatas de Mendoza.
A comissão Nacional Argentina do Esporte acabou denominando-os como “Los Gigantes Descalzos de la Montaña”.
Cabe destacar que para esta edição do torneio participaram 54 times procedentes das diversas províncias do País anfitrião, além dos times nacionais da Bolívia, do Brasil, do Chile, do Uruguay e da Venezuela, permitindo a participação de mais de 800 crianças entre os dias 11 e 14 do passado mês de outubro.
Para se ter uma ideia da popularidade atingida por este evento esportivo (iniciado em 2010 no Equador e tendo passado pela cidade de De La Vega na República Dominicana) desta vez, participaram delegações de 20 províncias da República Dominicana e de Países como o México, Guatemala e Equador.
Cabe ainda ressaltar as políticas públicas aplicadas à comunidade indígena dos TRIQUIS e que a partir de 2009 (inicialmente com 500 crianças) geraram em pouco tempo (4 anos), a mentalidade de campeões em 2,500 crianças que recebem da “Academia de Baloncesto Indígena de México” aprendizagem psicológica (entre outros, cursos de liderança e “risoterapia”) com a única condição de frequentar as escolas municipais com média mínima de 8,5, sem a qual não lhes é permitido treinar nem participar dos jogos oficiais. No Brasil, estas políticas públicas canalizadas em geral por ONGs especializadas, vem gerando também resultados surpreendentes, notadamente nas comunidades de baixa renda.
Ainda com a emoção (e profunda admiração) à flor da pele, rendo homenagem a estas crianças (e a seus professores e treinadores), donos eternos do Território Nacional, à sua luta incansável pela superação física e espiritual, à sua coragem, ao seu valor em combate e à sua seriedade e integridade inquestionáveis.
HB

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PEQUENA CRÔNICA DO MEDO

Cao de Fo chines em bronze olhos de vidro lapidados 10x8x6cm. R$ 300,00 Esta pequena história já faz parte da tradição oral brasileira e me foi contada por uma das minhas professoras, (D. Elisa Cláudia).
A origem parece irremediavelmente perdida, mas consigo ainda situa-la na terra de um dos casais 20 que tenho o prazer de conhecer a muito tempo (também meus professores, Celso e Heloisa), o já lendário e misterioso Mato Grosso do Sul e mais especificamente numa longínqua fazenda à beira do Pantanal.
O protagonista, conhecido capataz calejado nas lides do trabalho rural era o próprio João sem medo. De nome Juvenal, nasceu, cresceu e nunca saiu daquelas terras que conhecia como a palma da sua mão. Eficiente no trato com o gado e com os cavalos dominava com o olhar aquela turma toda que se desenvolvia nas atividades do dia a dia da fazenda (muito provavelmente de propriedade da família Rondon).
Todavia, sua principal característica (e por isso conhecido não apenas na região, mas no Estado todo) era sua intrepidez, seu caráter destemido, arrojado e por que não dizer sua coragem sem limites e sua consequente valentia a toda prova.
Juvenal tinha apreendido o que sabia com o pai e já em tenra idade nadava em rio de piranhas, pegava touro à unha, descascava cobra na hora da fome e chegou a se espalhar a fama de que as onças pintadas (e até os porcos monteses) disfarçavam para não ter que encontrar com ele, quando caminhava no meio do mato.
Seu café da manhã (já quase às cinco horas da manhã, após ter feito a ronda inicial para verificar o funcionamento da fazenda) consistia num quilo de carne bovina muito mal passada, acompanhada de um litro de leite (ainda morno após a primeira ordenha do dia) e uma dúzia de bananas que, segundo ele, seriam indispensáveis para poder aguentar até as onze horas, horário em que impreterivelmente costumava almoçar (independentemente do local da fazenda em que estivesse trabalhando).
Exigia que o café sem açúcar, que costumava beber várias vezes por dia estivesse sempre fervendo, fato este que costumava comprovar jogando pequeno jato no rabo do perdigueiro “Getúlio” que invariavelmente o acompanhava. Desnecessário dizer que se o Getúlio não se incomodava muito com a ousadia do seu dono, ele devolvia o café.
Certo dia, ou melhor, certa tarde, no fim da faina aparentemente interminável, a turma já reunida no alpendre anexo à casa principal, como de costume, em volta do fogo e do quentão, tocando viola e sanfona para cantarolar velhas musicas sertanejas bem ao gosto da rapaziada, alguém (certamente corajoso) perguntou:
– Juvenal, me diz uma coisa, disse um dos peões atraindo a atenção dos presentes,
(se fez um silêncio sepulcral como se a turma já adivinhasse o teor da pergunta).
– Você tem medo de alguma coisa? Perguntou.
O velho Juvenal não pensou duas vezes para responder,
– Claro falou de supetão, sempre tive medo dos “malamens”.
Perplexa, aquela gente simples que teria apostado que o Juvenal não tinha medo de nada, respondeu quase ao uníssono:
Malamens? Que raio de bicho é esse? Perguntaram cheios de curiosidade.
E o Juvenal, na maior honestidade que lhe foi possível, respondeu: Eu não sei, não, mas se o nosso Senhor Jesuscristo tinha medo deles, eu também tenho.
A turma não conseguia superar a sua perplexidade quando veio o complemento da explicação do Juvenal:
– Ora, não lembram que até rezava para seu Pai pedindo: “e livrai-me de todo malamen”.
Ninguém mais abriu a boca (a absoluta maioria porque continuou sem saber que raio de bicho era aquele e certamente a minoria jamais esquecerá do único medo que o Juvenal tinha nesta vida).
Ao que se sabe, naquela tarde a serenata foi concluída antes da hora, provavelmente com medo dos “malamens”.

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PRESENÇA CULTURAL MEXICANA NO BRASIL

Cidade da Música Temporariamente usente do teclado por razões pessoais, volto com uma das melhores noticias dos últimos tempos: A presença cultural mexicana no Brasil.
Simples assim, sem violência,sem black blocks, sem elefantes, sem partidos políticos e sem policia.
A Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, através da sua Secretaria de Cultura, em parceria com o Consulado do México na Cidade Maravilhosa, se integrando aos esforços para a realização do IV Festival de Violão da UFRJ, apresentam o espetáculo: “MÉXICO DOS MEUS SONHOS” a ser realizado na próxima quinta feira, 24 de outubro do presente, as 20:00 horas, no Teatro Municipal Carlos Gomes (Rua Pedro I, 4 / Centro / Tels.: 2215-0556 e 2224-36-02).
Nada mais satisfatório, finalmente um intercâmbio desejável, sem competições, sem medalhas e aparentemente sem vantagens para ninguém.
E é aqui que radica o aparente engano, porque na verdade, lucram todos, ambos os países, mexicanos e brasileiros, elites e povo, autoridades e comunidade, músicistas e melômanos, todos, em fim, levando vantagem, não ao estilo Gerson, por não envolver os tais fins lucrativos, mas enriquecendo o espírito numa audição que promete ser inesquecível.
Neste evento singular deverão brilhar a Orquestra de Violões da Universidade Nacional Autônoma do México, sob a regência do Professor Rodrigo Lara Alonso e o octeto mexicano de cordas “SICARÚ”.
Ao parecer, nem tudo está perdido.
Desfrutem-o e sejam felizes.
HB

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2 DE OTUBRO DE 1968

Memoria priísta Impossível esquecer os fatos ocorridos em dois de outubro de 1968 na Praça das três Culturas  na cidade do México (Nonoalco Tlatelolco). Impossível esquecer o massacre, mesmo passados 45 anos. Impossível compactuar com o assassinato coletivo, com a imposição de uma vontade política custe o que custar, gerada pela ignorância a vaidade e o egoísmo;  impossível admitir a arbitrariedade, o cinismo, a prepotência e o abuso das autoridades sabendo-se totalmente impunes.
Não podemos deixar passar esta data macabra na qual foram assassinados colegas, professores e alunos de todos os níveis de ensino, público e privado, reivindicando investimentos em Educação e Saúde quando as autoridades mexicanas já tinham decidido investir apenas na organização dos IXX Jogos Olímpicos da era moderna.
Apenas algumas letras em homenagem aos heróis anônimos que deram sua vida protestando, exercendo seu direito de expressão (na época, os vândalos não tinham feito sua estreia no caótico cenário urbano) e que segundo as próprias autoridades (obviamente escondendo a verdade na tentativa de minimizar os fatos) teriam morrido (apenas) 500 civis aproximadamente, quando reunidos em praça pública foram metralhados desde helicópteros oficiais em voos rasantes.
Curiosamente, estamos falando de data coincidente com o nascimento do Mahatma Gandhi. Triste homenagem ao paladino da resistência pacífica.
O Brasil já teve experiências semelhantes, não sei si desta gravidade, mas que custaram 21 anos de retrocesso democrático, 21 anos sem direitos civis, perante as decisões  esdrúxulas do grupo no poder.
Já tive oportunidade de falar sobre este triste episódio na história do México e consequentemente na história da arbitrariedade e da prepotência na América Latina. Não podemos esquecer e muito menos desconhecer a história, sob o risco de repetirmos os mesmos erros cometidos no passado, tanto por parte dos repressores como por parte dos reprimidos.
Estes fatos, tanto no México como no Brasil (em função do aparecimento dos vândalos, aparentemente sem objetivos, isto é, não conseguimos ver filosofia alguma na destruição de orelhões, de pontos de ônibus ou de mobiliário urbano como um todo), nos faz pensar na nítida vontade política de criminalizar o protesto social (pacífico) numa associação direta com a barbárie e a violência irracional, eventualmente provocada por grupos políticos, criando na opinião pública, juízos errados na avaliação das políticas repressivas em vigor.
Por outro lado, estamos absolutamente convencidos (mesmo não sendo seu objetivo principal) de que os vândalos vem ensinando às autoridades municipais, estaduais e federais a correta leitura das vozes das ruas e ainda por cima, de que sem eles (infelizmente), poderíamos protestar pacificamente pelos próximos vinte anos sem que nada, absolutamente nada, ocorresse sob o céu estrelado do Cruzeiro, o mesmo do lábaro pátrio e daquele que continua a resplandecer em nossos corações.

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DIA INTERNACIONAL DO IDOSO

maos_idoso Alguém (juro que não sei quem foi) decidiu cunhar uma das frases mais falsas e mentirosas de que se tem noticia, achando que a terceira idade seria “a melhor idade”. Imagino que tenha acontecido quando o Brasil ainda era o país do futuro, mas a expressão ficou totalmente desmoralizada quando o grande baiano Jorge Amado, em entrevista televisionada, foi solicitado por uma jovem repórter para transmitir uma mensagem para os jovens. Ele, absolutamente relaxado, com uma fala arrastada (como bom baiano) e provavelmente refletindo um saco absolutamente cheio e enfastiado com o tipo de perguntas que lhe eram formuladas, falou: “O QUE POSSO DIZER PARA A JUVENTUDE, SEM MEDO DE ERRAR, É QUE A VELHICE É UMA MERDA”, com o que encerrou a tal entrevista em que teve que responder pela milésima vez, o porquê de ter-se tornado comunista, quando encontrou a Zélia pela primeira vez, qual a sua personagem preferida entre Gabriela, Dona Flor, Tieta do Agreste e Teresa Batista cansada de guerra e qual a profissão que teria escolhido se no fosse escritor.
De qualquer forma não me sinto a vontade para comemorar um dia que, em que pese a minha avantajada idade, ainda não sinto como meu.
Tudo bem, sou do tempo em que todos os telefones eram pretos, a televisão fazia sua estreia num mundo incrédulo perante os avanços da tecnologia, não existiam aviões a jato e muito menos computadores individuais (o único existente na minha universidade, ocupava várias salas enormes, funcionava com cartões perfurados e a gente não se aproximava muito com medo de explosão). Nunca usei fraudas descartáveis e cresci acreditando em Papai Noel e no coelhinho da páscoa, além de nunca ter desconfiado que as lutas do telecatch fossem de mentirinha.
Meu mundo não era descartável, pelo contrário tudo era “guardável”, o jornal velho servia para embrulhar qualquer objeto e principalmente para secar os vidros das janelas, as roupas dos mais velhos eram herdadas pelos mais novos e até os furos nas meias exigiam ovos de cerâmica e dedais para serem cerzidas.
Ainda me revolta a forma como as crianças curiosas (e mal educadas) tratam os seus brinquedos e sou capaz de pagar qualquer preço por um brinquedo de lata (eram de corda) da década de 50 e estou decidido a pedir a Deus (para a próxima encarnação) a difícil prova da riqueza, apenas para fazer uma coleção dos charmosos carros “rabo de peixe” da minha mocidade.
Tudo bem, nem todo tempo passado foi melhor e hoje, até consigo fazer amizade com os frequentadores das filas para idosos criadas pelos bancos para atender os seus clientes com conforto (e ainda tem quem fale que são para poder garfar os parcos proventos das aposentadorias e das pensões).
Todavia, nem tudo são queixas e saudades, hoje, por exemplo (tenho testemunhas), em pleno dia internacional do idoso, criado pela Organização das Nações Unidas para conscientizar a população mundial para os problemas do envelhecimento da sociedade como um todo, fui abordado quase que de forma irreverente (porém ainda contida) quando já na boca do caixa no meu banco favorito, fui interpelado por uma senhora indignada com o que imaginou fosse uma ousadia da minha parte, perguntando se eu (por acaso) tinha sessenta anos.
Quando falei que não tinha sessenta mas setenta anos, pediu para ver a minha carteira de identidade e surpresa além de profundamente contrariada, não esperou pelo meu muito obrigado (certamente não dispunha de tempo a perder em papo fiado com um velho como eu).
De fato, passei a ver o dia internacional do idoso com mais simpatia.

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VERDADES MENTIROSAS VI

Candomblé III Com este capítulo, POSTRIMEIRIAS, concluo a publicação do meu texto intitulado “VERDADES MENTIROSAS” escrito em outubro de 2008, o que me faz lembrar do intelectual mexicano Afonso Reyes Ochoa (1889-1959), escritor, poeta, ensaísta, tradutor e diplomata que nos disse: “publico as minhas obras por carecer da paciência necessária para rever os originais eternamente”. De fato, a releitura sistemática dos originais não publicados, parece ser o carma de qualquer escritor. O tormento da “perfeição” persegue todos eles (incluindo quem esta escreve), incapazes de se (nos) satisfazer(mos) com os textos produzidos. Mas já que lembrei do compatriota Afonso Reyes, vale a pena lembrar também de episódio curioso, acontecido no fim dos anos trinta e inicio dos quarenta do século passado, quando Reyes exercia o cargo de Embaixador do México no Brasil. Tendo feito amizade com o destacado pintor brasileiro Cândido Portinari, solicitou de próprio punho, ao governo mexicano, uma bolsa de estudos para que Portinari pudesse fazer um estagio no ateliê do muralista Diego Rivera. Solicitação esta indeferida, sob pretexto de falta de verbas disponíveis para este objetivo. Enfim, o dia que a cultura, como um todo, puder adquirir a importância que merece, Talvez possamos sair de vez do subdesenvolvimento que ainda nos afoga.

V.- POSTRIMEIRIAS

A Mamãe viviria mais 17 anos contra sua vontade. Mal percebeu, contrariada, que não mais vivia na total acepção da palavra, mas apenas respirava, sem alegrias, sem mais (des)iluções, sem expectativas, vendo a prole crescer, cumprindo plenamente a vontade dos deuses do Candomblé, dos deuses africanos donos da vida do destino e da morte.
No seu caso, a lógica e o bom senso teriam sido contrariados, presidiu as cerimônias fúnebres de filhos, netos e bisnetos, já tinha vivido intensamente, muito mais tempo do que todos aqueles que a precederam, tinha a convicção de já ter cumprido a sua missão. Dizia que a sua dose de sofrimento já tinha sido suficiente para pagar qualquer mal que por ventura tivesse feito e esperava a morte como um fato absolutamente natural, após um ciclo de vida estabelecido pelos mesmos deuses dos seus antepassados.
O que ela não sabia é que as leis divinas ainda não tinham sido integralmente cumpridas.
Já no fim da vida, num fenômeno pouco comum, a própria bisneta tinha-se tornado bisavó. Acabara de nascer um menino forte e sadio na alvorada do novo século, quase cem anos após o nascimento da Mamãe.
Vinte de julho de 1900 foi a data do nascimento, exatos sessenta e nove anos antes do homem pisar na lua. O Antônio se referia à data do seu nascimento e de forma especial a magia do número nove na vida da família. (*) Foi batizado pelos jesuitas, nove dias depois do nascimento, como Antônio Manuel Borges, na tradicional igreja de São Sebastião no Morro do Castelo, curiosamente, nas mais ortodoxas práticas católicas, apostólicas e romanas do sacramento.
Ninguém se esqueceu do pranto vigoroso daquele menino saudável que ao sentir a água benta na sua testa, protestava pela agressão sofrida por parte do prelado.
Teria sido provavelmente, a última alegria de D. Lucrécia.
Antônio Manuel foi um neném grande e muito bonito, pesou quase 4 Kg. ao nascer. Agnès sempre lhe disse que era igual ao pai que media quase 2,00m de altura, porém nunca conseguiu pesar mais do que 80 Kg. Era magro e comprido. Ela o achava descendente de alguma mistura entre bantos e watusis, mas em qualquer hipótese, destacava-se pelo seu porte avantajado, pelas pernas extremamente longas e pela cor brilhante de negro retinto, quase roxo.
Para Antônio o pai nunca existiu, Agnès nunca contou nada a respeito e ele nunca perguntou. Não guardou nenhuma lembrança do pai, nem para bem, nem para mal. Na familia sempre se evitou falar do assunto. Parece que foi morto por um antigo desafeto, “Capitão do Mato” das redondezas, lembrou Antônio, sem dar muita importância ao fato.
Sua infância foi aparentemente feliz, mimado por todas as mulheres do clã, como único descendente vivo do sexo masculino e de alguma forma, mesmo sendo homem, unica esperança de continuidade na direção do “Ìyámi Agba”.
Por razões que nunca ninguém compreendera a ligação da matriarca com o tataraneto parecia vir de longe; se não fosse pelas rígidas normas do candomblé, poderia se dizer que obedecia a uma ligação cármica de varias encarnações. Pelo menos o comportamento da Mamãe assim o indicava: depois de longo período de alienação, ela voltava a se interessar pela própria vida, tirava forças do passado e apostava no futuro do menino como lider e perpetuador das tradições yorubás que tanto prezava.
Alguma intuição certamente. Talvez alguma vidência. D Lucrécia olhava para ele com orgulho e muita esperança.

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(*) Nota do autor relativa à mágia do número 9. (Em sessenta e nove anos, desde o nascimento do Antônio, a humanidade teria passado pelo maior desenvolvimento tecnológico da sua história).

No inicio da década de 1990 estive conversando com o vô Antônio, um pouco antes do seu aniversário. Estava completando seus noventa anos. Nasceu sob o signo de “Cancer” e era “Rato” no zodíaco chines, contava ele sem consciência do que isto poderia significar, apenas repetindo, por hábito, sua caracterização astrológica.
Acompanhava o século, era facil saber a sua idade. Foi quando me contou a história da festa dos 90 anos da Mamãe, acontecida já em plena era republicana.
Era capaz de dar o braço direito para ter estado naquela festa, me disse que por muitos anos seu sonho dourado foi dançar para ela, para os deuses africanos e para seus antepassados naquela data mágica.
Lembrou que D. Lucrécia tinha sido mãe de 9 filhos (*), que naquela ocasião ela fez 90 anos, como ele também faria seus 90 em 1990 e que o número de descendentes diretos da matriarca era também de 90 (**).
O número nove era de fato, o número mítico de Oyá (líder das mulheres) explicava Antônio. Inclusive, já numa forçação de barra, mencionou que o avô Jacintho, teria morrido com 54 anos, cuja soma também seria nove.
História triste a do velho Antônio, alma solitária, sem descendência. Nunca se casou.
Era soldado aposentado, muito alto, talvez 1,90? só que na sua geração os homens altos eram incomuns, curvados pra frente, não tinham nenhuma agilidade, eram desengonçados e bonachões, não faziam esporte pela falta de jeito e vez por outra eram objeto de zombaria por parte das crianças da vizinhança. Para agradar estes pequenos sátiros, o velho fazia de quando em vez a imitação dos mamulengos de Olinda e girava e caminhava feito marionete, levantando os braços e fazendo caretas sob a algarabia e as risadas da molecada. Comentava que tinha apreendido a imitar os mamulengos com sua inesquecível tia Jójis, quando criança, no Morro do Castelo.
Antônio era de fato um homem grande, embora mais para balofo do que para atleta, tinha cara de gente triste, de alguem que carrega a vida nas costas, motivo mais do que provável para não conseguir levantar a cabeça (e os hombros e as costas e todo o resto), porém meigo, incapaz de matar uma barata. Usava o cabelo à moda do exêrcito, não por hábito da caserna, mas provavelmente porque impossibilitado de pentea-lo, era a única forma possível de domá-lo.
Vestia-se de forma simples e tinha cultivado ao longo dos anos, um ventre disforme que mesmo sem o hábito da bebida, lhe dava uma aparência lemuróide, braços cumpridos e mãos de tamanho descomunal.
Afinal, uma personalidade conturbada e solitária, homenzarrão introvertido, calmo e bom, amante das crianças e dos bichos que se realizava na música e na dança. Apenas a responsabilidade herdada da mãe como babalorixá do “Ìyámi Agba” mostrou-se com o passar dos anos, muito pesada para ele.
A impressão que durante muitos anos guardei do vô Antônio, era a de um homem sensível, um pensador, quase um filósofo, embora com escassa cultura.
Mais recentemente, após a nossa conversa, constatei finalmente que esta imagem, era uma mera idealização da minha parte, gerada pela sua introversão e pela sua dificuldade de expressão, o que sempre confundi com uma sabedoria própria de quem fala pouco e uma paciência inexistente, de quem tinha apenas enorme dificuldade para se manifestar.
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(*) Iyá Omo Mesian = Mãe de 9 filhos.
(**) 9 filhos, 32 netos e 49 bisnetos, Total = 90 descendentes diretos

Confessou-me com certo embaraço, os seus receios, sua insegurança e seu medo para enfrentar uma vida que não tinha escolhido viver. Na ânsia de lhe transmitir as responsabilidades do matriarcado, sem a avaliação correta da capacidade e da potencialidade do menino, a mãe Agnès foi provavelmente, a maior responsável por esta frustração, por este desânimo, enfim, por este desacerto vocacional.
Antônio por sua vez, teria complementado este quadro de sentimentos negativos pela verdadeira fixação, desenvolvida ao longo da vida pela Mamãe, admiração crescente pela personalidade e pela força espiritual da matriarca. Ele próprio, talvez, nunca percebeu, mas certamente tal condicionamento marcou sua personalidade, determinando suas atitudes e pensamentos ao longo da vida.
Dona Teresinha, amiga íntima do Antônio chegou a comentar comigo:
– Você precisava vê-lo dançar, rivaliza com as mulheres mais experientes nas danças do candomblé, embora seja um grandalhão desajeitado.
– Dança melhor do que elas, é sensual, compenetrado e distante.
– É tão competente no seu desempenho religioso, que as filhas de santo se esquecem frequentemente do seu sexo, somos uma família, todas, além de irmãs, somos muito amigas.
As palavras da Mãe Teresinha ficaram muito tempo ressoando nos meus ouvidos, demorei para reciclar a imagem que desde menino tive do vô Antônio e compatibiliza-la com as constatações que fazia nesta ocasião sobre o querido pai de santo, responsável pela brilhante condução do “Ìyámi Agba”.
– Mas que temperamento ele tem, viu? continuou a mãe de santo, colaboradora do Antônio.
-Acho que é sua forma de superar o complexo de inferioridade que arrasta desde jóvem, fica evidente quando grita para sublinhar suas atitudes e trejeitos, onde quer que ele se encontre.
– Complexo de inferioridade? perguntei, trejeitos? estranhei.
– Do que está falando? Teresinha, inquirí.
– Conheço o Antônio desde que me entendo por gente, sempre pensei nele como o avô que nunca tive e jamáis percebí nada semelhante, desabafei.
A mãe de santo ruborizou sintindo que tinha falado de mais, que não devería ter dito aquilo para quem via o Antônio como parente.
Porém, ambos sabiamos no fundo o fato que tinha gerado o rubor por parte dela e a minha perplexidade; na verdade não era bem o complexo de inferioridade que teria me perturbado, era sim, denotando um evidente preconceito da minha parte, a descoberta de uma possível homosexualidade do velho. Trejeitos? continuava a me perguntar.
Senti-me incapaz de articular qualquer explicação para o fato, a minha perplexidade tornou-se evidente e a mãe de santo voltou a intervir:
– Olha aqui meu amigo, para ser um verdadeiro representante do culto não é necessário ser mulher, esta historia já era, disse ela, censurando meu preconceito e o dos próprios africanos com relação à preferência feminina para dirigir os rituais do culto.
-Antônio Manuel é suficientemente honesto e digno para adotar na prática do candomblé, um comportamento feminino quando as coisas do espírito nele se manifestam.
– Sendo homem, continuou D. Teresinha, é verdade que é obrigado a delegar muitas das suas funções cruciais a uma mulher do templo e no final das contas, é ela quem manda no seu lugar, mas sua postura, a presença marcante de babalorixá e principalmente a sua mediunidade, sempre lhe garantiram a liderança do terreiro.
– É verdade aduziu, que isto por vezes esvazia o cargo do Pai, mas continuo achando o Antônio Manuel extremamente coerente e sério, não é a toa que o Orixá do nosso Babalaô é Iansã, a deusa bisexual.
Conheci a Mãe Teresinha há muito tempo, mas nunca tivemos uma ligação direta.
Sabia da confiança que o Antônio depositava na sua seriedade e me transmitia confiança e intimidade. Era determinada e guerreira, meio rígida, até pelas exigências do culto, mas, inteligente e extremamente dinâmica capaz de substituir o Babalorixá quando necessário.
O que sempre achei extranho é que fosse gaúcha, muito branca, cabelos castanhos até os ombros e olhos côr de mel, mas o próprio Antônio me disse que no Rio Grande do Sul existiam mais terreiros de candomblé do que no Rio de Janeiro, perdendo apenas para a Bahia. (*)
Ela beirava os 50, altiva, postura sempre erguida, cabeça levantada e andar firme e cadenciado. Seios firmes, tez amadurecida pelas dificuldades da vida, por vezes dura; séria e intransigente para qualquer deslize, notadamente a mentira. Seus olhos, verdadeiras janelas da alma, revelavam, invariavelmente, seu estado de espírito. Livro aberto para próprios e estranhos.
Naquela ocasião, como ao parecer por hábito, vestia branco dos pés à cabeça. Saia rodada com apliques rendados em faixas alternadas entre a barra e a cintura, blusa de bainhas de laçada, larga e decotada, tipo tomara que caia, permitindo o aparecimento dos seus ombros e do inicio dos seus alvos seios. No seu colo, emoldurado por pesados e inúmeros colares, destacava-se um cordão de ouro embrulhado em fitas com as cores da bela Oxum, (**) combinando com os brincos do mesmo material. Descalça e leve, parecia sempre caminhar sobre a ponta dos pés.
Para ser honesto a minha verdadeira perplexidade não era a descoberta da possível homosexualidade do velho, mas o fato de nunca ter sequer suspeitado desta condição, nos quase cinquenta anos de verdadeira amizade.
Eu sabia que dançava no terreiro, nunca o ocultou, sabia da sua mania de se travestir, mas sempre achei que isto fazia parte do culto, até sabia que confeccionava suas roupas femininas inspirado na D. Lucrécia, mas “gritinhos” e “trejeitos” certamente nunca tinha presenciado.
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(*) Conforme levantamentos recentes da Federação Bahiana de Cultos Afro-brasileiros, existem 2,230 terreiros de candomblé no estado da Bahia, registrados na entidade e quase 2% da população brasileira (mais de 3 milhões de pessoas) se declararam, no último Censo do IBGE (2000), item religião, como adeptos do candomblé.
No mesmo Censo, os dados sobre religião, revelaram que o Rio Grande do Sul, é o Estado que, proporcionalmente, concentra o maior número de adeptos de Religiões Afro-brasileiras no país, onde são conhecidas como “Batuque” ou “Nação” em memória das nações africanas, berço desta tradição.
(**) Oxum é a deusa das aguas, dona e moradora do rio oxum, afluente do Niger na mãe Africa.
Senhora da fertilidade, da gestação e do parto, responsável pelos recém-nascidos, lavando-os com as suas águas e folhas refrescantes. Jóvem e bela mãe, mantendo suas características de adolescente.
Cheia de paixão, busca ardorosamente o prazer. Coquete e vaidosa é a mais bela das divindades e possui a própria malicia da mulher menina. É sensual e exibicionista, consciênte de sua rara beleza, se utiliza desses atributos com jeito e carinho para seduzir as pessoas e conseguir os seus objetivos.

– Eu compreendo, disse-me Teresinha, o nosso Pai, pode até ser homosexual, mas nunca foi devasso, acho inclusive, se quer saber, que é virgem. De fato, nunca teve relacionamento algum, nem com homem, nem com mulher, concluiu.
– Tinha por vezes um comportamento extranho, mas sempre achei que fosse produto da sua introversão, da sua aparente timidez. Seu sentido do humor é que era diferente, explicava nossa amiga.
– O grande conflito de Antônio Manuel, prosseguiu, radica na sua profunda vontade de encarnar a força e a tradição da Mamãe, porém seu físico avantajado, seu corpanzil, evidenciando seu sexo, o impedem de exercer plenamente as responsabilidades de uma Ialorixá.
– Desta forma, acho eu, compensa em segredo suas frustrações, inclusive, tendo aprendido com o avô Jacintho a pratica da magia.
A rigor, sabia-se a boca pequena, que além da sua habilidade como feiticeiro (era devoto de Ifã, deidade do destino) e da sua homosexualidade latente, tinha uma queda por mulheres jóvens e gordas a quem gostava de dar tapas e beliscões, o que teria lhe acarretado alguns problemas sérios, contornados, ou pela sua força e corpulencia, ou pela intervenção da mãe Agnès, quem sempre desfrutou do respeito e da confiança da comunidade.
Demorei em me recuperar. Muito tempo se passou até que conseguisse encarar de novo o vô Antônio, questionava a minha incapacidade de compreender a realidade, me achava realmente preconceituoso, mas no fundo, aquele filme da vida do Antônio passava repetidamente pela minha cabeça. Lembrava-me da sua coleção de bonecas, dos seus vestidos coloridos, dos colares e brincos à usança da Mamãe, do seu esforço para se aperfeiçoar na execução das danças do terreiro e inclusive do ódio que sentia pela milicia e por todo aquilo que pudesse lembrar o exército, onde, pela falta de recursos, teve a oportunidade de estudar, inclusive e principalmente de forma remunerada.
Tudo num instante parecia reviver o passado, a minha infância.
De fato nunca se casou, era solitário e introvertido, mas seria realmente virgem?
Teria mantido este tipo de comportamento por causa do “Ìyámi Agba”? pela responsabilidade herdada da mãe Agnès?, pela fixação que tinha pela Mamãe?
Tudo parecia confuso, tentava não dar importância as novas, porém tradicionais evidências, mas no fundo do meu coração o carinho pelo velho falava mais alto.
Gostava dele, da sua liderança conquistada pela bondade, pela sutileza do amor ao próximo, especialmente as crianças, aos fracos e aos oprimidos.
Antônio me lembrava do conhecido tio Julio, também um gigante da minha infância, na figura, na voz de eterna rouquidão e na mansidão, mas principalmente pela sua ingenuidade e pela sua capacidade de criar soluções simples para problemas aparentemente complexos. Era capaz de engulir litros e litros de sorvete de pistache, com pena do dono da sorveteria, imaginando a dificuldade que ele teria para vender um sorvete tão desagradável ao (seu) paladar.
A ultima vez que vi o Antônio Manuel foi em 1992, pouco antes de ele falecer, na missa anual que promovia para a Mamãe Lucrécia, para a velha Sikè, de tão viva memória.
A comemoração religiosa ocorreu como sempre, na Igreja da Matriz, no bairro de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro de onde saimos caminhando rumo ao cemitério São João Batista onde tinha sido enterrada sua mãe D. Agnès. Era o seu ritual anual, após a missa da grande matriarca, a oferenda de lírios do campo no túmulo da mãe.
Seu caminhar era lento, balançava o corpo e a cabeça de um lado para outro, os braços não acompanhavam a caminhada de forma natural, curiosamente pareciam apenas dependurados dos ombros, feito boneco articulado. A idade também não ajudava mais, a sua vida se tornou pesada e ele, taciturno, melancólico, frustrado e triste.
Parecia que adivinhava meu pensamento, contou-me alguns trechos da sua vida, as pasagens de que mais se orgulhava, coincidindo com a minha curiosidade pelos pontos escuros da sua personalidade.
Eu apenas fazia um esforço para não interromper, prestava muita atenção e assentia com a cabeça, atiçando a conversa, permitindo que percebesse o meu interesse pelas suas histórias.
Sabe? meu filho (me chamava de filho e eu sentia seu afeto direto no olhar, sem nenhum subterfúgio), acho que não vou viver muito mais tempo, viví de ilusão, aferrado as tradições, sonhando com os antepassados, me sacrificando para poder corresponder as expectativas da minha mãe. Hoje não tenho mais ilusões, se a Teresinha se empenhar até poderá dar continuidade ao “Ìyámi Agba”, mas a minha impressão é que todo isto vai acabar.
-Como se diz hoje em dia é uma questão de mercado, nê?
– O Rio de Janeiro não é a Bahia, sabe? aqui as pessoas se ligaram muito mais à Umbanda, à Quibanda, as seitas pentecostais e evangélicas. Cada religião atinge à camada de população que mais se identifica com ela.
– O candomblé as vezes me parece alheio à populçao carioca, não é mais como antigamente, talvez seja muito rígido, talvez a população se sinta mais próxima dos pretos velhos, dos caboclos.
– Parece que os deuses africanos não fazem mais sucesso por aqui.
O velho estava ofegante, caminhar e falar ao mesmo tempo não era mais possível para ele. Entramos na Imperial, na esquina da Voluntários com a Real Grandeza para beber uma água mineral. O Antônio comentou algumas peculiaridades da tradicional confeitaria e lembrou-se do mini-pão francês amanteigado, especialidade da casa desde o século XIX. Comprou algumas gramas, após se certificar que o pão ainda estivesse quente. O clima, ameaçador, mudava rapidamente; continuava abafado, mas fortes rajadas de vento anunciavam chuva a qualquer momento.
Continuamos a caminhar em direção ao cemitério, sem pressa, nada mais parecia perturbar seu raciocinio, poderia cair um temporal, mas nada poderia afastá-lo do seu caminho, da sua tradição, da sua homenagem anual à própria genitora.
Mas viu meu filho, continuou do ponto em que tinha parado.
– As vezes penso que isto tudo não passa de um sonho em que todo se mistura, não tem criadores nem criaturas, somos todos espíritos eternos, é a realidade, mesmo que pareça sonho. Me belisco para saber que não estou sonhando e mesmo sentindo dor, continuo a sonhar porque percebo a relatividade do mundo em que vivemos.
– Mentimos a nós mesmos a vida toda, acreditamos em fantasias e por vezes colocamos tanta fé no nosso sonho que até somos capazes de materializa-lo.
– Agradeço a Deus por todas as benções recebidas e por me permitir perceber a realidade, mesmo sem conhecer a sua verdade.
– Você pode não acreditar, mas é fácil enganar o nosso cérebro, faze-lo pensar que estamos felizes para ele produzir endorfinas gratificantes, ou manifestar tristeza e desencanto, permitindo que envenene o nosso organismo, ou ainda, mesmo nos comportando naturalmente, de imediato, o subconsciênte, como exímio dedo-duro, transmite nossos verdadeiros dilemas, gerando molestias e dissabores inconsciêntes.
Eu acompanhava seu ritmo no caminhar e no pensar, fiquei com medo de atrapalhar o seu raciocinio e principalmente cortar a sua fluência, incomum e surpreendente.
Mesmo assim, com toda a coragem de que fui capaz, numa das pausas feitas para respirar, futuquei:
-Mas vô Antônio, me acostumei a ve-lo sempre satisfeito, de bem com a vida, o Senhor mesmo me transmitiu a crença nos deuses africanos, a confiar neles como criadores do mundo e como guardiões das criaturas que aqui colocaram.
Acostumei-me a ve-lo dançar, a vestir aquelas saias rodadas, a acreditar firmemente que mesmo sendo homem, podería dar conta do terreiro como foi o desejo da sua mãe e da Dona Lucrécia.
O senhor acha que se tivesse sido mulher as coisas teriam sido mais fáceis no “Ìyámi Agba”, perguntei sem saber ao certo se queria ouvir a resposta.
Isto justifica a homosexualidade? Perguntei. Os deuses africanos permitem? Arrisquei.
Ele sabia a verdadeira origem das minhas perguntas, da minha repentina e tardia curiosidade sobre o tema; sem parar de caminhar, quase chegando ao cemitério, mudando o tom da voz e tentando encontrar as respostas no fundo do coração, o velho Antônio me disse:
– Meu filho, espírito não tem sexo, a gente apreende neste mundo com as experiências que o gênero em que reencarnamos nos proporciona. A homosexualidade não é sinônimo de depravação ou de libidinosidade, é a presença mediúnica das nossas experiências passadas em um ou em outro sexo. Nada a ver com relações sexuais, com libertinagem ou devassidão. É apenas atração incontestável pelo mesmo sexo, independentemente das convenções ditas sociais, compreendeu? A nossa mediunidade nos fala claramente sobre os hâbitos adquiridos, quando repetidamente reencarnamos num mesmo sexo.
– Veja meu caso, falou Antônio num tom de voz mais grave do que o normal, meus padrões de excelência me foram transmitidos pela minha mãe, pelas fortes tradições estabelecidas pela Mamãe, a minha tribo sempre foi matriarcal, a força era das mulheres, a autoridade sempre foi exercida pelas mulheres, EU DEVERIA TER SIDO MULHER.
Naquele momento a emoção do velho aflorou, mesmo silenciosamente, em volumosas e pesadas lágrimas.
Voltei a me sentir aquela criança que ouvia suas estorinhas embasbacado, sem compreender muita coisa, mas fascinado pela imaginação e a experiencia do vô Antônio.
Estavamos cruzando naquele instante o portão principal do cemitério e lí quase involuntáriamente a frase do Fernando R. Gil: “REVERTERE AD LOCUM TUUM”.
…………………….Sempre me identifiquei com a Mamãe, você sabe, continuou o Antônio.
– Não precisa dizer nada vô, o Senhor não está legal, disse-lhe já arrependido de ter feito aquelas perguntas cretinas, cujas respostas em nada modificariam a minha forma de pensar sobre a grande figura que me tinha brindado seu carinho e sua atenção por tantos anos.
A chuva iniciava sua queda inexorável e os pingos se fundiam entre si até tornar-se uma verdadeira tempestade. A General Polidoro alagou em menos de cinco minutos, e o céu obscureceu ameaçador. A natureza cobrava mais uma vez o seu tributo, o rio Berquó que desaparecera sob os túmulos para que a Santa Casa de Misericôrdia pudesse enterrar mais alguns corpos e consequentemente embolsar mais um trocado, tinha sido criminosamente canalizado. O sistema de esgoto ainda era, mais de cem anos depois, o mesmo que D. Pedro II tería mandado colocar.
Neste clima de tormenta, quase apocalíptico pela predominância dos tons acinzentados que envolviam o ambiente, o velho Antônio olhou para os lirios do campo que carregava e percebeu que tinham absorvido toda a carga de emoção que ele próprio colocara na nossa conversa, cairam desfalecidos sem mais possibilidades de salvação. Murcharam antes da oferenda, pela primeira vez em todos esses anos.

Rio de Janeiro, 16 de outubro de 2008
HB

“Un escenario, otra música, las tumbadoras que tanto de noche como de dia le imprimen ritmo al culto santero.
Veneramos a los santos a qualquier hora, en una casa, en una terraza, en un pátio y nos encontramos nuevamente en el ojo del huracan, a algunos pasos del altar donde se exponen candidos objetos: cazuelas, muñecas,medallas, flores, collares, platitos con monedas, guisados, ofrendas sin fin, a Changó, Obatalá, Yemayá, Ogún, Ochún e Eleguá.
Humedecemos la tierra con el caldo que de ella extraemos e gota a gota, enajenados, apagamos la sed de los orixas. La fiesta pagana se adueña del lugar.
Los pies frenéticos de las madrinas acompañan la cadencia primitiva de los mantras caribeños y dejan pulsar naturalmente, bajo los albos vestidos, las caderas voluptuosas.
Los dedos azotan el aire bochornoso de los templos, dilaceran las pieles, golpean los cueros, perturban el gris del pensamiento. Las grupas se agreden, los pechos se rozan, los torsos giran, las mentes vuelan y las brazas de la posesión encienden las miradas evadidas hacia el mas allá.
YORUBA reina sobre su pueblo atiborrado, embriagado y finalmente apaciguado. La cubanía fermenta en ese manto popular y arrabalero de la Habana.”
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Uma VERDADE MENTIROSA.
Livre adaptação sobre texto original de Fernando Campoamor: “Cuba: La Leyenda del Ron.”

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Arquivado em A Prosa (A)fiada