Com este capítulo, POSTRIMEIRIAS, concluo a publicação do meu texto intitulado “VERDADES MENTIROSAS” escrito em outubro de 2008, o que me faz lembrar do intelectual mexicano Afonso Reyes Ochoa (1889-1959), escritor, poeta, ensaísta, tradutor e diplomata que nos disse: “publico as minhas obras por carecer da paciência necessária para rever os originais eternamente”. De fato, a releitura sistemática dos originais não publicados, parece ser o carma de qualquer escritor. O tormento da “perfeição” persegue todos eles (incluindo quem esta escreve), incapazes de se (nos) satisfazer(mos) com os textos produzidos. Mas já que lembrei do compatriota Afonso Reyes, vale a pena lembrar também de episódio curioso, acontecido no fim dos anos trinta e inicio dos quarenta do século passado, quando Reyes exercia o cargo de Embaixador do México no Brasil. Tendo feito amizade com o destacado pintor brasileiro Cândido Portinari, solicitou de próprio punho, ao governo mexicano, uma bolsa de estudos para que Portinari pudesse fazer um estagio no ateliê do muralista Diego Rivera. Solicitação esta indeferida, sob pretexto de falta de verbas disponíveis para este objetivo. Enfim, o dia que a cultura, como um todo, puder adquirir a importância que merece, Talvez possamos sair de vez do subdesenvolvimento que ainda nos afoga.
V.- POSTRIMEIRIAS
A Mamãe viviria mais 17 anos contra sua vontade. Mal percebeu, contrariada, que não mais vivia na total acepção da palavra, mas apenas respirava, sem alegrias, sem mais (des)iluções, sem expectativas, vendo a prole crescer, cumprindo plenamente a vontade dos deuses do Candomblé, dos deuses africanos donos da vida do destino e da morte.
No seu caso, a lógica e o bom senso teriam sido contrariados, presidiu as cerimônias fúnebres de filhos, netos e bisnetos, já tinha vivido intensamente, muito mais tempo do que todos aqueles que a precederam, tinha a convicção de já ter cumprido a sua missão. Dizia que a sua dose de sofrimento já tinha sido suficiente para pagar qualquer mal que por ventura tivesse feito e esperava a morte como um fato absolutamente natural, após um ciclo de vida estabelecido pelos mesmos deuses dos seus antepassados.
O que ela não sabia é que as leis divinas ainda não tinham sido integralmente cumpridas.
Já no fim da vida, num fenômeno pouco comum, a própria bisneta tinha-se tornado bisavó. Acabara de nascer um menino forte e sadio na alvorada do novo século, quase cem anos após o nascimento da Mamãe.
Vinte de julho de 1900 foi a data do nascimento, exatos sessenta e nove anos antes do homem pisar na lua. O Antônio se referia à data do seu nascimento e de forma especial a magia do número nove na vida da família. (*) Foi batizado pelos jesuitas, nove dias depois do nascimento, como Antônio Manuel Borges, na tradicional igreja de São Sebastião no Morro do Castelo, curiosamente, nas mais ortodoxas práticas católicas, apostólicas e romanas do sacramento.
Ninguém se esqueceu do pranto vigoroso daquele menino saudável que ao sentir a água benta na sua testa, protestava pela agressão sofrida por parte do prelado.
Teria sido provavelmente, a última alegria de D. Lucrécia.
Antônio Manuel foi um neném grande e muito bonito, pesou quase 4 Kg. ao nascer. Agnès sempre lhe disse que era igual ao pai que media quase 2,00m de altura, porém nunca conseguiu pesar mais do que 80 Kg. Era magro e comprido. Ela o achava descendente de alguma mistura entre bantos e watusis, mas em qualquer hipótese, destacava-se pelo seu porte avantajado, pelas pernas extremamente longas e pela cor brilhante de negro retinto, quase roxo.
Para Antônio o pai nunca existiu, Agnès nunca contou nada a respeito e ele nunca perguntou. Não guardou nenhuma lembrança do pai, nem para bem, nem para mal. Na familia sempre se evitou falar do assunto. Parece que foi morto por um antigo desafeto, “Capitão do Mato” das redondezas, lembrou Antônio, sem dar muita importância ao fato.
Sua infância foi aparentemente feliz, mimado por todas as mulheres do clã, como único descendente vivo do sexo masculino e de alguma forma, mesmo sendo homem, unica esperança de continuidade na direção do “Ìyámi Agba”.
Por razões que nunca ninguém compreendera a ligação da matriarca com o tataraneto parecia vir de longe; se não fosse pelas rígidas normas do candomblé, poderia se dizer que obedecia a uma ligação cármica de varias encarnações. Pelo menos o comportamento da Mamãe assim o indicava: depois de longo período de alienação, ela voltava a se interessar pela própria vida, tirava forças do passado e apostava no futuro do menino como lider e perpetuador das tradições yorubás que tanto prezava.
Alguma intuição certamente. Talvez alguma vidência. D Lucrécia olhava para ele com orgulho e muita esperança.
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(*) Nota do autor relativa à mágia do número 9. (Em sessenta e nove anos, desde o nascimento do Antônio, a humanidade teria passado pelo maior desenvolvimento tecnológico da sua história).
No inicio da década de 1990 estive conversando com o vô Antônio, um pouco antes do seu aniversário. Estava completando seus noventa anos. Nasceu sob o signo de “Cancer” e era “Rato” no zodíaco chines, contava ele sem consciência do que isto poderia significar, apenas repetindo, por hábito, sua caracterização astrológica.
Acompanhava o século, era facil saber a sua idade. Foi quando me contou a história da festa dos 90 anos da Mamãe, acontecida já em plena era republicana.
Era capaz de dar o braço direito para ter estado naquela festa, me disse que por muitos anos seu sonho dourado foi dançar para ela, para os deuses africanos e para seus antepassados naquela data mágica.
Lembrou que D. Lucrécia tinha sido mãe de 9 filhos (*), que naquela ocasião ela fez 90 anos, como ele também faria seus 90 em 1990 e que o número de descendentes diretos da matriarca era também de 90 (**).
O número nove era de fato, o número mítico de Oyá (líder das mulheres) explicava Antônio. Inclusive, já numa forçação de barra, mencionou que o avô Jacintho, teria morrido com 54 anos, cuja soma também seria nove.
História triste a do velho Antônio, alma solitária, sem descendência. Nunca se casou.
Era soldado aposentado, muito alto, talvez 1,90? só que na sua geração os homens altos eram incomuns, curvados pra frente, não tinham nenhuma agilidade, eram desengonçados e bonachões, não faziam esporte pela falta de jeito e vez por outra eram objeto de zombaria por parte das crianças da vizinhança. Para agradar estes pequenos sátiros, o velho fazia de quando em vez a imitação dos mamulengos de Olinda e girava e caminhava feito marionete, levantando os braços e fazendo caretas sob a algarabia e as risadas da molecada. Comentava que tinha apreendido a imitar os mamulengos com sua inesquecível tia Jójis, quando criança, no Morro do Castelo.
Antônio era de fato um homem grande, embora mais para balofo do que para atleta, tinha cara de gente triste, de alguem que carrega a vida nas costas, motivo mais do que provável para não conseguir levantar a cabeça (e os hombros e as costas e todo o resto), porém meigo, incapaz de matar uma barata. Usava o cabelo à moda do exêrcito, não por hábito da caserna, mas provavelmente porque impossibilitado de pentea-lo, era a única forma possível de domá-lo.
Vestia-se de forma simples e tinha cultivado ao longo dos anos, um ventre disforme que mesmo sem o hábito da bebida, lhe dava uma aparência lemuróide, braços cumpridos e mãos de tamanho descomunal.
Afinal, uma personalidade conturbada e solitária, homenzarrão introvertido, calmo e bom, amante das crianças e dos bichos que se realizava na música e na dança. Apenas a responsabilidade herdada da mãe como babalorixá do “Ìyámi Agba” mostrou-se com o passar dos anos, muito pesada para ele.
A impressão que durante muitos anos guardei do vô Antônio, era a de um homem sensível, um pensador, quase um filósofo, embora com escassa cultura.
Mais recentemente, após a nossa conversa, constatei finalmente que esta imagem, era uma mera idealização da minha parte, gerada pela sua introversão e pela sua dificuldade de expressão, o que sempre confundi com uma sabedoria própria de quem fala pouco e uma paciência inexistente, de quem tinha apenas enorme dificuldade para se manifestar.
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(*) Iyá Omo Mesian = Mãe de 9 filhos.
(**) 9 filhos, 32 netos e 49 bisnetos, Total = 90 descendentes diretos
Confessou-me com certo embaraço, os seus receios, sua insegurança e seu medo para enfrentar uma vida que não tinha escolhido viver. Na ânsia de lhe transmitir as responsabilidades do matriarcado, sem a avaliação correta da capacidade e da potencialidade do menino, a mãe Agnès foi provavelmente, a maior responsável por esta frustração, por este desânimo, enfim, por este desacerto vocacional.
Antônio por sua vez, teria complementado este quadro de sentimentos negativos pela verdadeira fixação, desenvolvida ao longo da vida pela Mamãe, admiração crescente pela personalidade e pela força espiritual da matriarca. Ele próprio, talvez, nunca percebeu, mas certamente tal condicionamento marcou sua personalidade, determinando suas atitudes e pensamentos ao longo da vida.
Dona Teresinha, amiga íntima do Antônio chegou a comentar comigo:
– Você precisava vê-lo dançar, rivaliza com as mulheres mais experientes nas danças do candomblé, embora seja um grandalhão desajeitado.
– Dança melhor do que elas, é sensual, compenetrado e distante.
– É tão competente no seu desempenho religioso, que as filhas de santo se esquecem frequentemente do seu sexo, somos uma família, todas, além de irmãs, somos muito amigas.
As palavras da Mãe Teresinha ficaram muito tempo ressoando nos meus ouvidos, demorei para reciclar a imagem que desde menino tive do vô Antônio e compatibiliza-la com as constatações que fazia nesta ocasião sobre o querido pai de santo, responsável pela brilhante condução do “Ìyámi Agba”.
– Mas que temperamento ele tem, viu? continuou a mãe de santo, colaboradora do Antônio.
-Acho que é sua forma de superar o complexo de inferioridade que arrasta desde jóvem, fica evidente quando grita para sublinhar suas atitudes e trejeitos, onde quer que ele se encontre.
– Complexo de inferioridade? perguntei, trejeitos? estranhei.
– Do que está falando? Teresinha, inquirí.
– Conheço o Antônio desde que me entendo por gente, sempre pensei nele como o avô que nunca tive e jamáis percebí nada semelhante, desabafei.
A mãe de santo ruborizou sintindo que tinha falado de mais, que não devería ter dito aquilo para quem via o Antônio como parente.
Porém, ambos sabiamos no fundo o fato que tinha gerado o rubor por parte dela e a minha perplexidade; na verdade não era bem o complexo de inferioridade que teria me perturbado, era sim, denotando um evidente preconceito da minha parte, a descoberta de uma possível homosexualidade do velho. Trejeitos? continuava a me perguntar.
Senti-me incapaz de articular qualquer explicação para o fato, a minha perplexidade tornou-se evidente e a mãe de santo voltou a intervir:
– Olha aqui meu amigo, para ser um verdadeiro representante do culto não é necessário ser mulher, esta historia já era, disse ela, censurando meu preconceito e o dos próprios africanos com relação à preferência feminina para dirigir os rituais do culto.
-Antônio Manuel é suficientemente honesto e digno para adotar na prática do candomblé, um comportamento feminino quando as coisas do espírito nele se manifestam.
– Sendo homem, continuou D. Teresinha, é verdade que é obrigado a delegar muitas das suas funções cruciais a uma mulher do templo e no final das contas, é ela quem manda no seu lugar, mas sua postura, a presença marcante de babalorixá e principalmente a sua mediunidade, sempre lhe garantiram a liderança do terreiro.
– É verdade aduziu, que isto por vezes esvazia o cargo do Pai, mas continuo achando o Antônio Manuel extremamente coerente e sério, não é a toa que o Orixá do nosso Babalaô é Iansã, a deusa bisexual.
Conheci a Mãe Teresinha há muito tempo, mas nunca tivemos uma ligação direta.
Sabia da confiança que o Antônio depositava na sua seriedade e me transmitia confiança e intimidade. Era determinada e guerreira, meio rígida, até pelas exigências do culto, mas, inteligente e extremamente dinâmica capaz de substituir o Babalorixá quando necessário.
O que sempre achei extranho é que fosse gaúcha, muito branca, cabelos castanhos até os ombros e olhos côr de mel, mas o próprio Antônio me disse que no Rio Grande do Sul existiam mais terreiros de candomblé do que no Rio de Janeiro, perdendo apenas para a Bahia. (*)
Ela beirava os 50, altiva, postura sempre erguida, cabeça levantada e andar firme e cadenciado. Seios firmes, tez amadurecida pelas dificuldades da vida, por vezes dura; séria e intransigente para qualquer deslize, notadamente a mentira. Seus olhos, verdadeiras janelas da alma, revelavam, invariavelmente, seu estado de espírito. Livro aberto para próprios e estranhos.
Naquela ocasião, como ao parecer por hábito, vestia branco dos pés à cabeça. Saia rodada com apliques rendados em faixas alternadas entre a barra e a cintura, blusa de bainhas de laçada, larga e decotada, tipo tomara que caia, permitindo o aparecimento dos seus ombros e do inicio dos seus alvos seios. No seu colo, emoldurado por pesados e inúmeros colares, destacava-se um cordão de ouro embrulhado em fitas com as cores da bela Oxum, (**) combinando com os brincos do mesmo material. Descalça e leve, parecia sempre caminhar sobre a ponta dos pés.
Para ser honesto a minha verdadeira perplexidade não era a descoberta da possível homosexualidade do velho, mas o fato de nunca ter sequer suspeitado desta condição, nos quase cinquenta anos de verdadeira amizade.
Eu sabia que dançava no terreiro, nunca o ocultou, sabia da sua mania de se travestir, mas sempre achei que isto fazia parte do culto, até sabia que confeccionava suas roupas femininas inspirado na D. Lucrécia, mas “gritinhos” e “trejeitos” certamente nunca tinha presenciado.
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(*) Conforme levantamentos recentes da Federação Bahiana de Cultos Afro-brasileiros, existem 2,230 terreiros de candomblé no estado da Bahia, registrados na entidade e quase 2% da população brasileira (mais de 3 milhões de pessoas) se declararam, no último Censo do IBGE (2000), item religião, como adeptos do candomblé.
No mesmo Censo, os dados sobre religião, revelaram que o Rio Grande do Sul, é o Estado que, proporcionalmente, concentra o maior número de adeptos de Religiões Afro-brasileiras no país, onde são conhecidas como “Batuque” ou “Nação” em memória das nações africanas, berço desta tradição.
(**) Oxum é a deusa das aguas, dona e moradora do rio oxum, afluente do Niger na mãe Africa.
Senhora da fertilidade, da gestação e do parto, responsável pelos recém-nascidos, lavando-os com as suas águas e folhas refrescantes. Jóvem e bela mãe, mantendo suas características de adolescente.
Cheia de paixão, busca ardorosamente o prazer. Coquete e vaidosa é a mais bela das divindades e possui a própria malicia da mulher menina. É sensual e exibicionista, consciênte de sua rara beleza, se utiliza desses atributos com jeito e carinho para seduzir as pessoas e conseguir os seus objetivos.
– Eu compreendo, disse-me Teresinha, o nosso Pai, pode até ser homosexual, mas nunca foi devasso, acho inclusive, se quer saber, que é virgem. De fato, nunca teve relacionamento algum, nem com homem, nem com mulher, concluiu.
– Tinha por vezes um comportamento extranho, mas sempre achei que fosse produto da sua introversão, da sua aparente timidez. Seu sentido do humor é que era diferente, explicava nossa amiga.
– O grande conflito de Antônio Manuel, prosseguiu, radica na sua profunda vontade de encarnar a força e a tradição da Mamãe, porém seu físico avantajado, seu corpanzil, evidenciando seu sexo, o impedem de exercer plenamente as responsabilidades de uma Ialorixá.
– Desta forma, acho eu, compensa em segredo suas frustrações, inclusive, tendo aprendido com o avô Jacintho a pratica da magia.
A rigor, sabia-se a boca pequena, que além da sua habilidade como feiticeiro (era devoto de Ifã, deidade do destino) e da sua homosexualidade latente, tinha uma queda por mulheres jóvens e gordas a quem gostava de dar tapas e beliscões, o que teria lhe acarretado alguns problemas sérios, contornados, ou pela sua força e corpulencia, ou pela intervenção da mãe Agnès, quem sempre desfrutou do respeito e da confiança da comunidade.
Demorei em me recuperar. Muito tempo se passou até que conseguisse encarar de novo o vô Antônio, questionava a minha incapacidade de compreender a realidade, me achava realmente preconceituoso, mas no fundo, aquele filme da vida do Antônio passava repetidamente pela minha cabeça. Lembrava-me da sua coleção de bonecas, dos seus vestidos coloridos, dos colares e brincos à usança da Mamãe, do seu esforço para se aperfeiçoar na execução das danças do terreiro e inclusive do ódio que sentia pela milicia e por todo aquilo que pudesse lembrar o exército, onde, pela falta de recursos, teve a oportunidade de estudar, inclusive e principalmente de forma remunerada.
Tudo num instante parecia reviver o passado, a minha infância.
De fato nunca se casou, era solitário e introvertido, mas seria realmente virgem?
Teria mantido este tipo de comportamento por causa do “Ìyámi Agba”? pela responsabilidade herdada da mãe Agnès?, pela fixação que tinha pela Mamãe?
Tudo parecia confuso, tentava não dar importância as novas, porém tradicionais evidências, mas no fundo do meu coração o carinho pelo velho falava mais alto.
Gostava dele, da sua liderança conquistada pela bondade, pela sutileza do amor ao próximo, especialmente as crianças, aos fracos e aos oprimidos.
Antônio me lembrava do conhecido tio Julio, também um gigante da minha infância, na figura, na voz de eterna rouquidão e na mansidão, mas principalmente pela sua ingenuidade e pela sua capacidade de criar soluções simples para problemas aparentemente complexos. Era capaz de engulir litros e litros de sorvete de pistache, com pena do dono da sorveteria, imaginando a dificuldade que ele teria para vender um sorvete tão desagradável ao (seu) paladar.
A ultima vez que vi o Antônio Manuel foi em 1992, pouco antes de ele falecer, na missa anual que promovia para a Mamãe Lucrécia, para a velha Sikè, de tão viva memória.
A comemoração religiosa ocorreu como sempre, na Igreja da Matriz, no bairro de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro de onde saimos caminhando rumo ao cemitério São João Batista onde tinha sido enterrada sua mãe D. Agnès. Era o seu ritual anual, após a missa da grande matriarca, a oferenda de lírios do campo no túmulo da mãe.
Seu caminhar era lento, balançava o corpo e a cabeça de um lado para outro, os braços não acompanhavam a caminhada de forma natural, curiosamente pareciam apenas dependurados dos ombros, feito boneco articulado. A idade também não ajudava mais, a sua vida se tornou pesada e ele, taciturno, melancólico, frustrado e triste.
Parecia que adivinhava meu pensamento, contou-me alguns trechos da sua vida, as pasagens de que mais se orgulhava, coincidindo com a minha curiosidade pelos pontos escuros da sua personalidade.
Eu apenas fazia um esforço para não interromper, prestava muita atenção e assentia com a cabeça, atiçando a conversa, permitindo que percebesse o meu interesse pelas suas histórias.
Sabe? meu filho (me chamava de filho e eu sentia seu afeto direto no olhar, sem nenhum subterfúgio), acho que não vou viver muito mais tempo, viví de ilusão, aferrado as tradições, sonhando com os antepassados, me sacrificando para poder corresponder as expectativas da minha mãe. Hoje não tenho mais ilusões, se a Teresinha se empenhar até poderá dar continuidade ao “Ìyámi Agba”, mas a minha impressão é que todo isto vai acabar.
-Como se diz hoje em dia é uma questão de mercado, nê?
– O Rio de Janeiro não é a Bahia, sabe? aqui as pessoas se ligaram muito mais à Umbanda, à Quibanda, as seitas pentecostais e evangélicas. Cada religião atinge à camada de população que mais se identifica com ela.
– O candomblé as vezes me parece alheio à populçao carioca, não é mais como antigamente, talvez seja muito rígido, talvez a população se sinta mais próxima dos pretos velhos, dos caboclos.
– Parece que os deuses africanos não fazem mais sucesso por aqui.
O velho estava ofegante, caminhar e falar ao mesmo tempo não era mais possível para ele. Entramos na Imperial, na esquina da Voluntários com a Real Grandeza para beber uma água mineral. O Antônio comentou algumas peculiaridades da tradicional confeitaria e lembrou-se do mini-pão francês amanteigado, especialidade da casa desde o século XIX. Comprou algumas gramas, após se certificar que o pão ainda estivesse quente. O clima, ameaçador, mudava rapidamente; continuava abafado, mas fortes rajadas de vento anunciavam chuva a qualquer momento.
Continuamos a caminhar em direção ao cemitério, sem pressa, nada mais parecia perturbar seu raciocinio, poderia cair um temporal, mas nada poderia afastá-lo do seu caminho, da sua tradição, da sua homenagem anual à própria genitora.
Mas viu meu filho, continuou do ponto em que tinha parado.
– As vezes penso que isto tudo não passa de um sonho em que todo se mistura, não tem criadores nem criaturas, somos todos espíritos eternos, é a realidade, mesmo que pareça sonho. Me belisco para saber que não estou sonhando e mesmo sentindo dor, continuo a sonhar porque percebo a relatividade do mundo em que vivemos.
– Mentimos a nós mesmos a vida toda, acreditamos em fantasias e por vezes colocamos tanta fé no nosso sonho que até somos capazes de materializa-lo.
– Agradeço a Deus por todas as benções recebidas e por me permitir perceber a realidade, mesmo sem conhecer a sua verdade.
– Você pode não acreditar, mas é fácil enganar o nosso cérebro, faze-lo pensar que estamos felizes para ele produzir endorfinas gratificantes, ou manifestar tristeza e desencanto, permitindo que envenene o nosso organismo, ou ainda, mesmo nos comportando naturalmente, de imediato, o subconsciênte, como exímio dedo-duro, transmite nossos verdadeiros dilemas, gerando molestias e dissabores inconsciêntes.
Eu acompanhava seu ritmo no caminhar e no pensar, fiquei com medo de atrapalhar o seu raciocinio e principalmente cortar a sua fluência, incomum e surpreendente.
Mesmo assim, com toda a coragem de que fui capaz, numa das pausas feitas para respirar, futuquei:
-Mas vô Antônio, me acostumei a ve-lo sempre satisfeito, de bem com a vida, o Senhor mesmo me transmitiu a crença nos deuses africanos, a confiar neles como criadores do mundo e como guardiões das criaturas que aqui colocaram.
Acostumei-me a ve-lo dançar, a vestir aquelas saias rodadas, a acreditar firmemente que mesmo sendo homem, podería dar conta do terreiro como foi o desejo da sua mãe e da Dona Lucrécia.
O senhor acha que se tivesse sido mulher as coisas teriam sido mais fáceis no “Ìyámi Agba”, perguntei sem saber ao certo se queria ouvir a resposta.
Isto justifica a homosexualidade? Perguntei. Os deuses africanos permitem? Arrisquei.
Ele sabia a verdadeira origem das minhas perguntas, da minha repentina e tardia curiosidade sobre o tema; sem parar de caminhar, quase chegando ao cemitério, mudando o tom da voz e tentando encontrar as respostas no fundo do coração, o velho Antônio me disse:
– Meu filho, espírito não tem sexo, a gente apreende neste mundo com as experiências que o gênero em que reencarnamos nos proporciona. A homosexualidade não é sinônimo de depravação ou de libidinosidade, é a presença mediúnica das nossas experiências passadas em um ou em outro sexo. Nada a ver com relações sexuais, com libertinagem ou devassidão. É apenas atração incontestável pelo mesmo sexo, independentemente das convenções ditas sociais, compreendeu? A nossa mediunidade nos fala claramente sobre os hâbitos adquiridos, quando repetidamente reencarnamos num mesmo sexo.
– Veja meu caso, falou Antônio num tom de voz mais grave do que o normal, meus padrões de excelência me foram transmitidos pela minha mãe, pelas fortes tradições estabelecidas pela Mamãe, a minha tribo sempre foi matriarcal, a força era das mulheres, a autoridade sempre foi exercida pelas mulheres, EU DEVERIA TER SIDO MULHER.
Naquele momento a emoção do velho aflorou, mesmo silenciosamente, em volumosas e pesadas lágrimas.
Voltei a me sentir aquela criança que ouvia suas estorinhas embasbacado, sem compreender muita coisa, mas fascinado pela imaginação e a experiencia do vô Antônio.
Estavamos cruzando naquele instante o portão principal do cemitério e lí quase involuntáriamente a frase do Fernando R. Gil: “REVERTERE AD LOCUM TUUM”.
…………………….Sempre me identifiquei com a Mamãe, você sabe, continuou o Antônio.
– Não precisa dizer nada vô, o Senhor não está legal, disse-lhe já arrependido de ter feito aquelas perguntas cretinas, cujas respostas em nada modificariam a minha forma de pensar sobre a grande figura que me tinha brindado seu carinho e sua atenção por tantos anos.
A chuva iniciava sua queda inexorável e os pingos se fundiam entre si até tornar-se uma verdadeira tempestade. A General Polidoro alagou em menos de cinco minutos, e o céu obscureceu ameaçador. A natureza cobrava mais uma vez o seu tributo, o rio Berquó que desaparecera sob os túmulos para que a Santa Casa de Misericôrdia pudesse enterrar mais alguns corpos e consequentemente embolsar mais um trocado, tinha sido criminosamente canalizado. O sistema de esgoto ainda era, mais de cem anos depois, o mesmo que D. Pedro II tería mandado colocar.
Neste clima de tormenta, quase apocalíptico pela predominância dos tons acinzentados que envolviam o ambiente, o velho Antônio olhou para os lirios do campo que carregava e percebeu que tinham absorvido toda a carga de emoção que ele próprio colocara na nossa conversa, cairam desfalecidos sem mais possibilidades de salvação. Murcharam antes da oferenda, pela primeira vez em todos esses anos.
Rio de Janeiro, 16 de outubro de 2008
HB
“Un escenario, otra música, las tumbadoras que tanto de noche como de dia le imprimen ritmo al culto santero.
Veneramos a los santos a qualquier hora, en una casa, en una terraza, en un pátio y nos encontramos nuevamente en el ojo del huracan, a algunos pasos del altar donde se exponen candidos objetos: cazuelas, muñecas,medallas, flores, collares, platitos con monedas, guisados, ofrendas sin fin, a Changó, Obatalá, Yemayá, Ogún, Ochún e Eleguá.
Humedecemos la tierra con el caldo que de ella extraemos e gota a gota, enajenados, apagamos la sed de los orixas. La fiesta pagana se adueña del lugar.
Los pies frenéticos de las madrinas acompañan la cadencia primitiva de los mantras caribeños y dejan pulsar naturalmente, bajo los albos vestidos, las caderas voluptuosas.
Los dedos azotan el aire bochornoso de los templos, dilaceran las pieles, golpean los cueros, perturban el gris del pensamiento. Las grupas se agreden, los pechos se rozan, los torsos giran, las mentes vuelan y las brazas de la posesión encienden las miradas evadidas hacia el mas allá.
YORUBA reina sobre su pueblo atiborrado, embriagado y finalmente apaciguado. La cubanía fermenta en ese manto popular y arrabalero de la Habana.”
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Uma VERDADE MENTIROSA.
Livre adaptação sobre texto original de Fernando Campoamor: “Cuba: La Leyenda del Ron.”